domingo, 24 de abril de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário – I)

24 de Abril [1993]
Passeio com Elena Butragueño e Glória González, que é a das fotos. Javier, pacientíssimo, foi de condutor e guia. Visitámos uma mulher chamada Dorotea, anciã de 94 anos, antiga oleira de obra grossa, uma espécie de Rosa Ramalho mais rústica. Já não trabalha, mas a dinastia (a avó dela já estava nesta arte) continua na pessoa de um genro, que, assinando com o seu próprio nome as peças que faz, também usa, algumas vezes, o nome da sogra... Entre os objectos que produzem, geralmente utilitários (embora seja duvidoso, nesta era do plástico triunfante, que alguém vá utilizar formas tão primitivas e pesadas), há duas figuras humanas, uma de homem, outra de mulher, nuas, com os órgãos sexuais ostensivamente modelados, e a que chamam os Noivos. Parece (mas talvez seja belo de mais para ser verdadeiro) que os noivos conejeros, dantes, trocavam um com o outro estas figuras, a noiva dava ao noivo a efígie feminina, o noivo à noiva a efígie masculina, era como se estivessem a dizer: «Este é o meu corpo, aqui o tens, é teu.» Comprámo-los, estão ali, diante de mim, ao lado de uma pequena estante de mesa, provavelmente do século XVIII, que exibe uma figurinha feita de madeiras embutidas representando o Cordeiro de Deus: «Este é o meu Corpo, tomai-o...» Por ideia de Pilar (como poderia não ser?), oferecemos a Glória e Elena dois gomis, do mesmo tipo daquele que já tínhamos comprado, há tempos, no Mirador deI Río, e, para nós, também, um jarro de boca baixa e larga que ainda tem cinzas dentro, vestígios do lume em que foi cozido. Estes artesãos não usam forno, as peças são cozidas ao ar livre, sobre grelhas de ferro. Quando Elena perguntou à velha Dorotea se gostava de ver por ali os turistas, ela respondeu que sim, tanto fazia entendê-los como não... O passeio terminou com uma rápida passagem por EI Golfo, mas antes tínhamos estado com uma personagem estranhíssima, um Enrique Díaz de Bethancourt, descendente, ao que se diz e ele confirma, da antiga família fundadora, no princípio do século XV. Vive numa finca meio abandonada, entre sujidade, trapos velhos, lixo por toda a parte, como um anacoreta descuidado dos primores do corpo, salvo a barba, bem aparada, num estilo entre o profeta e o sátiro. Por trás da casa, na encosta, há uma nespereira cujos frutos devem ser dos mais doces do mundo. No fundo duma cova, agachada sobre a terra negra como um enorme animal escondido, a árvore suga das artérias secas dos vulcões os depósitos aIquímicos com que elabora a substância última da doçura. Punha-se o Sol quando regressámos de El Golfo. Uma enorme nuvem cor de fogo quase tocava o alto de uma montanha que refulgia da mesma cor. Era como se o céu não fosse mais do que um espelho e as imagens dele só pudessem ser as da Terra.
José Saramago (1922/11/16 – 2010/06/18)

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