quarta-feira, 21 de maio de 2014

Skaters (2011)



Descrição: Óleo sobre placa
Localização: colecção privada 
Autor: Manuel Alcorlo

sábado, 17 de maio de 2014

um homem sorri a morte -com meia cara


JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS

um homem
sorri a morte

-com meia cara



 Editorial Estampa





IN MEMORIAM

DO

DOUTOR FRANCISCO PULIDO VALENTE,

mestre de médico e de homem,

E DO

DOUTOR Luís NAVARRO SOEIRO,

grande coração ao serviço das almas

J. R. M.






Ao traçar estas páginas de memória duma crise, entre tantas que talvez um dia reúna em maior tomo, punha-se-me este problema: até que ponto pode um escritor falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas, usar da franqueza de um Rousseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não dizer já de um De Quincey ou Baudelaire? Flaubert deixou-nos documentada a crise inicial de epilepsia, que tanto faz pensar na do Jean-Jacques das Confessions; de James Joyce esforçam-se os biógrafos por descrever-nos a cegueira e a úlcera gástrica; e Uriel da Costa, e Scott Fitzgerald? Indo ao extremo da indiscrição, quanto se não tem especulado sobre a «necrofilia» de Camilo ou a castidade de Júlio Dinis! Já houve quem «explicasse» a angústia de Antero pelo aperto do piloro ou do cárdia, não sei bem, e o seu suicídio — ó céus! — pelo aumento da pressão atmosférica. O sofrimento, como parte tecidual da existência, é um enigma que empolga os homens.
Mas, independentemente da desproporção dos casos, a questão peca pela base, pois não é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até, como exemplo e lição, aos demais homens. Estas não são confissões de egotismo, nem de actos ou pensamentos secretos, nem sondagens do «eu odioso», mas um caso humano narrado em primeira mão pela sua mais próxima testemunha, com a objectividade de um romance, e pretexto para agitar certos problemas tão gerais como a inquietação da doença e da morte, ou a atitude do indivíduo perante o sofrimento físico e o destino pessoal.
Sim, foi sobretudo para os hipocondríacos — os aterrados da doença, os obcecados do fim — que eu escrevi estas páginas de jornal; depois, para os que queiram saber como se reage num leito de hospital, quando a morte ronda; e talvez também para aqueles médicos a quem interesse saber como os vêem os seus doentes.
Procurei pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna, onde a dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema pessoal se apaga e some.
Que escritor, dispondo deste material de experiência vivida, recusaria tratá-lo com objectividade, pintando o cenário e os actores dum drama que diariamente se desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos preconceitos? Não se escrevem porventura memórias de guerra, de masmorras e campos de concentração? E não será também saudável mostrar em que lamas o homem se arrasta ou mergulha por vezes, para delas se erguer e libertar, purificado?
O que importa ao escritor, subjectivador do objectivo, intérprete das reacções do indivíduo em face das calamidades que de todos os lados nos ameaçam, é recriar para os leitores o quadro das experiências de que foi o centro, dando-lhes a ilusão, porventura instrutiva, de serem eles os actores do drama.
Se, ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria de esperar que deles estivessem isentos os homens da bata branca. Nem de longe tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo. Pode-se dizer dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados, eles e elas, de epigramas e ataques, a humanidade não saberia nem poderia viver sem a sua presença.

J.R.M.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Coimbra, 15 de Maio de 1979.


UM POEMA DE AMOR

É um poema de amor.
Começa num sorriso promissor
E acaba num soluço
De saudade.
Entre essas duas margens,
Um rio de silêncio.
Um rio largo, onde se espelha, baça,
A paisagem severa de uma vida,
A que faltou a graça
Dessa remota hora repetida.

MIGUEL TORGADIÁRIO XIII

quarta-feira, 7 de maio de 2014

SE TE NÃO PODES DESFAZER DOS INIMIGOS, JUNTA-TE A ELES


Se os dias, como os substantivos, se classificassem pelo género, incluiria o de hoje entre os neutros. De manhã choveu e de tarde fez sol. Embora não seja homem de grandes afazeres, só pela noitinha pude sair de casa. O Outono está quase no fim, as árvores quase nuas e os caminhos atapetados de folhas. Gosto de as sentir debaixo dos pés. Criam-me a ilusão de passear por sobre as alfombras das salas, corredores e jardins privativos do sultanesco palácio que um dia o génio da lâmpada de Aladino me prometeu e até hoje ainda não cumpriu.
A quinhentos metros da aldeia, caí na solidão absoluta. Apenas um leve pipilar de aves que dir-se-ia vir ou fazer parte da terra. O poente enrubescia e a lua navegava alta por entre nuvens cor de chocolate com pinceladas laranja. Um fim de tarde de pastores enamorados, cavaleiros andantes, menestréis a dedilhar a tiorba e princesas elanguescidas ao balcão.
Vinha já de regresso, a pensar na morte da bezerra ou na minha, já me não lembro, surge-me pelas costas o Anacleto.
— Que andas por aqui a fazer a esta hora? — perguntou.
— Nada que me envergonhe. E tu?
— Venho ali do lameiro. E sabes o que fui lá fazer?
— Tornar a água.
— Mandinga aos porcos-bravos.
— Algum laço?
— Roupa velha.
— Restos de comida? É isso?
— Não.
— Homem explica-te por uma vez.
— Os tipos levam-me o lameiro virado. Vêm ao vezo dos niscros e da bolota e viram tudo. Se eu lá esconder umas peças de roupa usada, os gajos cheira-lhes a homem e fogem.
— Ora aí está um truque que eu desconhecia.
— Ficas a saber.
— Por falar em porcos. Já mataste?
— Eu agora já não mato. Os filhos estão todos para a França. A mulher não come carne de porco. Eu também não.
— Não gostas?
— Gostar, gosto. Mas o médico proibiu-ma. E olha que bem saudades tenho das matanças de antigamente. Aquilo é que eram festas! Ainda me lembro da primeira vez que matei. Como sabes, eu era um criado de servir. Não tinha onde cair morto, como se costuma dizer. Mas era apaixonadiço, namorei a minha Rosa e não tive outro remédio se não casar com ela. Fomos viver para uma corte cedida de esmola pela Viúva, boa mulher, Deus a tenha em bom lugar, que bem o mereceu. O espaço não era muito, mas a minha Rosa tanto insistiu que eu improvisei lá um cortelho para ela criar um reco. À força de leitugas e labrestos apanhados por esses lameiros de pasto e terras de centeio, castanhas, bolotas e batatas do rebusco, erva dessas bordas e o suprimento dumas malgas de grão e outras de farelo mendigadas pela minha Rosa por casa das lavradeiras a quem ajudava nas lides de casa, pudemos chegar ao São Martinho em condições de matar o nosso porquinho. Convidámos os meus sogros e quatro amigos para a matança. Fizemos tudo o que havia a fazer da parte da manhã e, ao meio-dia, estávamos à mesa. Julguei que os tipos, barba untada, barriga cheia, se fossem embora. Mas não. Só os meus sogros é que se retiraram. Os outros quatro puseram-se a jogar as cartas. Veio a merenda, veio a ceia, e os tipos não largavam. Acabaram-se as filhós de sangue, o sarrabulho, a coiracha, o fígado, os rins, o gorgomilo, tudo o que era do dia, e os tipos sempre a reclamar: «Então não há mais nada que se coma?» Comecei a desmanchar no porco. Lá para a meia-noite, rosnei ao ouvido da minha Rosa: «Vamo-nos deitar a ver se os alarves ganham vergonha e se vão embora.» E depois, em voz alta: «Bem, rapazes, desculpai lá, mas eu e a Rosa vamo-nos deitar.» «Ide. Ide, que nós cá nos arranjamos» — respondeu o que embaralhava. A minha Rosa, coitada, morta de fadiga, adormeceu logo. Mas eu não havia maneira de pregar olho. De golpe, saltei da cama, fui para junto deles e toca a dar ao dente... Não carai... E com esta me vou. Até logo.


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)