Após
um mês de sol apareceram os nevoeiros. A exemplo da Primeira República
Francesa, também em Barroso se podia chamar Brumário ao segundo mês do ano.
Brumário
por causa das brumas do «nosso descontentamento». Embirro sobremaneira com os
dias em que a aldeia acorda envolta em nevoeiro. Era a coberto dele que,
outrora, os lobos desciam dos montes e atacavam os cães nas eiras.
O
medo que nós tínhamos aos lobos! Nós, os pequenos pastores. «Viste lobos?» — perguntávamos,
na galhofa, àqueles que, por resfriado ou qualquer outra patologia das cordas
vocais, apareciam afónicos. Isto porque, quem visse lobo, perdia a fala.
A
mim, em boa hora o diga, nunca me aconteceu. Mas fartei-me de berrar a lobo.
Um
dia por outro, no relativo silêncio dos montes, ecoava o alarme: «Lobo! Aí vai Lobo! — E logo de todos
os pontos apareciam vozes: «Cerque, Ti António!» «Dá-lhe fogo, Joaquim!» — «Agarra
cão!»
Por
vezes não se via lobo nenhum. Outras, lá ia ele, disparado como uma seta, em
diagonal, direito à serra.
Eu,
em garoto, nunca arrostei com um lobo. E foi pena. Foi pena porque, assim,
nunca tive ensejo de pôr em prática a teoria que o Avô me ensinara. Um dia fui
dar com ele sentado no escano a calçar-se para ir à caça.
—
O Paizinho não tem medo aos lobos? — perguntei.
E
o Avô, que era muito divertido, respondeu:
—
Tenho lá algum medo aos lobos? Sabes o que lhes faço?
—
Não.
—
Repara.
E
o Avô, enfiando a mão no carpim, virou-o do avesso. Depois, arregaçando a manga
do braço direito, exemplificou:
—
Enfio-lhes a mão goelas abaixo, agarro-os gela tripa do cu e viro-os com o de
dentro para fora.
No
dia seguinte, estando eu à lareira a ensaiar a manobra numa peúga: «Eh, lobo!»
vem de lá a mãe e espeta-me dois tabefes:
—
Mas tu calças-te para ires com o gadinho, ou estás de pantomina?
Doutra
feita, andando eu com as vacas em Fontefria, aparece o Barrolo com a rês.
Pusemo-nos a jogar a choca e o rebanho foi andando até desaparecer para além
dum cômoro de maninho. Nisto, passa a caminheta das cinco da tarde. Diz o
Barrolo:
—
Tenho de ir virar a rês, se não ainda vem algum carro e desgraça-me.
E
mete a correr, pau no ar e goelas abertas:
— Chiba aí ei... ei... i.
Ainda
mal tinha desaparecido, reaparece, a tropeçar nas próprias pernas, cabelos no
ar, olhos esbugalhados, boca aberta.
—
Que foi, Barrolo? Viste lobo?
Ele
abria e fechava a mandíbula, como sapo das hortas em dias de calor ou náufrago
de água doce que perde o pé, mas não dizia nada.
—
Levou-te algum richelo?
Numa
voz roufenha, de cartilagens secas, o Barrolo lá conseguiu articular:
—
Uma ovelha!
—
Rais-ta parta! Porque não chamaste por mim?
—
Que é que tu lhe fazias?
Eu
exemplifiquei a manobra do Avô:
—
Virava-o com o de dentro para fora.
—
Fia-te. Se o visses acontecia-te o mesmo que a mim.
Olhei
para ele com mais atenção:
—
Não me digas que borraste as calças?
—
Ó Marinheiro?
Não fales nisto a ninguém, que é uma vergonha...
—
Oh, Barrolo? Não faças caso. Isso acontece a qualquer um. «Ninguém as veste que
as não borre... É
dos
livros.»
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 128 e s.)