quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

31 de Janeiro de 1966

Hoje, 31 de Janeiro, os Portugueses continuam incapazes de pôr as almas em movimento até aos sonhos. (Que sonhos?)
Todos deitados, à espera que caiam frutos de árvores por semear. 

31 de Janeiro de 1978

• Tenho horas e mesmo dias em que me sinto pronto para todos os ascetismos – e outros em que me julgo capaz de todos os desregramentos imagináveis. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

30 de Janeiro de 1966

Para que disfarçar? Senti uma alegria feroz quando o Mussolini caiu.
Desde os 20 anos que me perseguia como uma obsessão de mão levantada.
Caiu como merecia – obscuramente, sem grandeza. A grandeza é só para os grandes. 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

29 de Janeiro de 1966

Queres ser ditador? Habitua-te, antes de tudo, ao silêncio. Ao terrível silêncio das coisas, dos bichos e dos gritos dos homens nas cadeias…
E aos ecos que repetirão as tuas palavras nas cavernas nocturnas – com lábios de lágrimas. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

28 de Janeiro de 1966

Como convencer as multidões de que é preciso lutar (sem esperança de resultados mais próximos) para os homens que nascerão daqui a cem anos? 

domingo, 27 de janeiro de 2013

27 de Janeiro de 1966

As hipóteses que eu aceito (quando me surgirão outras mais justas e possíveis?) têm este defeito para a maioria dos homens: não transformam o mundo por milagre. Os impacientes não as admitem porque querem as modificações já e depressa. Outros simulam impaciência para gozarem sem remorsos (e até justificarem) o que existe – movimento ético aliás desnecessário.
A Ordem que encontramos, quando nascemos, até parece divina. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

DIAS COMUNS de José Gomes Ferreira

José Gomes Ferreira nasceu no Porto a 9 de Julho de 1900. Licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, exerceu o cargo de cônsul de Portugal na Noruega, de onde voltou em 1930. Regressado a Portugal dedicou-se ao jornalismo e à escrita.
Poeta e ficcionista, é um dos grandes nomes das letras portuguesas.
Faleceu em Lisboa, em 1985.
Proximamente, passarei a transcrever também o 1.º Diário, os DIAS COMUNS - I. PASSOS EFÉMEROS, iniciado em 1 de Outubro de 1965.
Proximamente, será divulgado o sexto e último volume dos Dias Comuns - Memória Possível.

[1968], 22 de novembro

O João José (Cochofel), no Café do Sr. Cunha:
O Namora, o Rebelo, o Palla e Carmo e o David Mourão-Ferreira foram recebidos pelo Marcelo numa entrevista que teve momentos tempestuosos de discussão taco a taco. Sobretudo quando se tratou da Censura – que o Marcelo desculpou com o argumento da sua existência em todos os países do mundo. – Além disso – acrescentou – em Portugal só se censuravam e proibiam obras subversivas ou que ofendessem a moral pública. Nunca por motivos políticos.
A primeira parte da defesa rebateu-a o Namora facilmente com os exemplos óbvios dos nossos parceiros na Nato: Inglaterra, França, etc. Quanto à segunda parte lembrou dois casos: a proibição do livro de Luandino Vieira, que não era subversivo nem amoral, e a de O Barão, adaptação teatral de Sttau Monteiro da novela de Branquinho da Fonseca. “Tenhamos a coragem de dizer que esta última peça foi proibida apenas porque o antigo Presidente do Conselho não gostava do autor.” O Marcelo calou-se, não sem que dissesse primeiro, com acrimónia, que os escritores eram uns seres impossíveis que não cediam a coisa alguma.
“É essa a nossa missão”, responderam. E então, por fim, o Marcelo confidenciou-lhes que não tinha gente que o ajudasse… “Nem para substituir os governadores civis!...” 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

[1968], 14 de novembro

O Redol enviou-me os Avieiros, reescritos recentemente com carinho de querer salvar do naufrágio um sonho velho. Desfolhei-o e, mais uma vez, senti esta verdade dominante na obra de Redol: o amor pelo povo-povo de pele verdadeira e suor real, bem diferente do que nós inventamos para os nossos livros pequeno-burgueses.
Basta ler-lhe uma página para se perceber logo que conviveu intimamente com os camponeses, não se enojou com o cheiro a carne de trabalho das carruagens de 3.ª classe, bebeu pelos copos das tabernas da malta, comeu do mesmo alguidar comum dos ganhões.
Isto é: Redol conhece-os em profundidade suficiente para poder dá-los como ninguém em superfície. Artisticamente falha, claro. Muitas vezes. (Não tem o sortilégio nem o talento literário de um Carlos de Oliveira ou de um Manuel da Fonseca.) E ninguém lhe poupa as fraquezas – como se provou quando lhe negaram o prémio Camilo Castelo Branco ao seu notabilíssimo romance Barranco de Cegos

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

24 de Janeiro de 1978

• «Drupas! Drupas! Drupas!», gritou o mestre exasperado, eriçado, de cabeça perdida, dando pulos e patadas no estrado, e agitando de tal modo os braços molinantes que os punhos postiços de celuloide lhe voaram pela sala fora. (s/d)
• Toma-se-me difícil falar do monstro interior que ora me impele ora me retém e paralisa. (s/d)
• Memória de revistas teatrais da infância: «Ó Senhor dos Navegantes,/ Isto agora é sem razão!/ Vai tudo pior que dantes/ Sem haver concentração!» Decerto a respeito de José Luciano, cacique supremo em cadeira de rodas: morador na Rua dos Navegantes. E esta: «Quem governa aqui! És tu, ó banana,/ Mas quem manda em ti/ É a tia Luciana.» Já então o espírito da criança selecionava os temas de ordem política…
• Este jornal de mais de trinta páginas ultradensas, onde dificilmente se encontra uma peça de autêntica informação, nas mãos de uma reduzida equipa de verdadeiros jornalistas, ficaria reduzido a não mais de quatro ou seis páginas de absorvente e rápida leitura!
• Ouvido também na infância: «Lá está o cuco a cantar: é sinal de vida longa!»
• – Como explica você o seu relativo isolamento?
– Em primeiro lugar só estou isolado na aparência, pois vivo em contacto constante com o nosso mundo através de todos os possíveis média; segundo, pela imposição de um trabalho escrupuloso; terceiro, porque me julgo e sinto de uma humildade extrema, conjugada com um excessivo, intolerável orgulho. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

23 de Janeiro de 1978

• «Então Vossa Excelência não se envergonha de ser português?» «De modo algum! Tenho até muita honra nisso. Do que eu às vezes me envergonho é de que alguns deles sejam – ou se digam – portugueses!» 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Coimbra, 22 de Janeiro de 1981

– A televisão acaba de transmitir algumas imagens da entrada na Academia Francesa de Marguerite Yourcenar. Às vezes o destino sabe ser correcto. Aquela que, desde as Memórias de Adriano, nunca mais perdeu a majestade sapiente do imperador biografado, merecia, de facto, receber um dia os louros do triunfo num Capitólio das letras. Tão justamente, que, por obra e graça da consagrada, as próprias pompas e insígnias, sempre controversas, assumiram excepcionalmente no acto solene uma dignidade emblemática. Mais do que honrá-la, foi ela que as honrou com a natural legitimidade de quem, nesta hora de negrura ocidental, dá cesáreo e vivo testemunho de milénios de claridade greco-latina. 

domingo, 20 de janeiro de 2013

[1968], 7 de novembro

Ontem, dia de aniversário da Gi Nemésio, lá nos reunimos todos-os-do-costume no 6.º andar da Avenida de Roma. Para só falar de literatos: o Cochofel, o Fafe e o Vitorino Nemésio… Sim, o malandro do Nemésio que, conforme verifiquei com avidez de olhos de inveja, continua a usar uma magnífica cabeleira preta.
– Não pintará o cabelo? – pergunto, insidioso.
– Não, não… – garantem-me.
– Não tem um cabelo branco.
Inclino-me, desconfiado e contrafeito. Como é possível que eu, com a mesma idade, tenha os cabelos totalmente brancos – de lua descida? E ele…
Então, para me confortar, desabafo de mim para mim, com este calorzinho tão consolador da vaidade:
– Pois sim. Mas não sou surdo… Ao passo que o Nemésio é surdo como uma porta dum palácio habitado por fantasmas. 

sábado, 19 de janeiro de 2013

[1968], 5 de novembro

De vez em quando, sangrento de crimes cometidos e por cometer, chamo-me pulha, bandido, miserável, indigno, infame, hediondo… Mas – coisa curiosa! – depois deste jogo de insultos ao espelho, em vez de me sentir envergonhado de tanta miséria podre, fico pelo contrário mais leve, perdoado – como os católicos depois da confissão… Que sou eu, no fim de contas, senão uma espécie de católico agnóstico? 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

[1968], 26 de outubro

Ao passo que vou envelhecendo, vou sentindo cada vez mais a tentação de não aturar padres… Sejam eles medianeiros, fiscais, pregadores de céus velhos ou de mundos novos… Padres religiosos ou ateus… Padres… Bocas de musgo vaidoso. Limitadores de liberdade. (Obsessão.) 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

[1968], 25 de outubro

Nos grupos de amigos acontece muitas vezes que um deles mostra tendência para sacerdote… E insensivelmente passa a influir, por fiscalização involuntária, nas ações e pensamentos dos restantes componentes do grupo. Das formas que conheço de coartar a liberdade, é a que mais odeio, porque se exerce geralmente em nome de um sentimento que não merece caricatura: a fraternidade.
. . .
Uma nota oficiosa da PIDE comunica ao mundo que um estudante preso sob a acusação de pertencer à LUAR morreu… de asma! Digam-me: é possível que alguém acredite que o pobre Daniel Joaquim Campos de Sousa Teixeira, aluno da Universidade Católica de Lovaina, tenha morrido de asma sem o auxílio substancial da tortura do sono?
. . .
Arrepio trágico:
Passaram dois meses sem que ninguém visse os presos da LUAR. Corre com insistência que o Palma, chefe do grupo, apareceu enforcado… 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

[1968], 15 de outubro


Eis a frase que anda na boca de toda a gente a respeito do Marcelo:
– É o administrador da falência.
É uma daquelas gracinhas que toda a gente inventou ao mesmo tempo.
. . .
Contou-me o meu irmão que as misturas com que a Sr.a Maria alimenta o Salazar através dos tubos são feitas com água de Fátima.
Também já lhe levaram para o quarto várias relíquias de santos.
Um certo setor ainda espera o milagre de vê-lo levantar do leito e expulsar os vendilhões da Pátria. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

[1968], 29 de setembro

De manhã cedo, através da porta entreaberta do quarto, surgiu a cabeça metediça da Maria, a informar-nos:
– Afinal, o velho não morreu… Ouvi agora a Emissora.
Parece que vendeu mas está em crise…
E fechou o suspiro com a frase habitual:
– É feito da pele do diabo!
. . .
Durante a sua oposição tática, para se apoderar da Presidência do Conselho assim que o Salazar morresse, o Marcello foi muitas vezes obrigado a tomar atitudes que possivelmente no futuro lhe criarão alguns amargos de boca. A extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores, por exemplo, não mereceu a aprovação incondicional do atual Presidente do Conselho. Chegou até a manifestar-nos a sua solidariedade. O mais teórico possível, claro. Pois quando lhe pedimos que assinasse o nosso protesto, furtou-se com um cartão ao David Mourão-Ferreira. Desse cartão recordo-me que constava esta frase: “Não é com vinagre que se apanham moscas.”
Não. É com gestos doces. Preparemo-nos, pois, para gramar uma ditadura de açúcar – que acabará por nos enjoar a todos. 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

[1968], 27 de setembro

No Café, deixei desfiar de pérolas de fumo:
– Apesar de tudo, custa-me a crer que o Marcelo despreze a grande zona da opinião pública intelectual e pequeno-burguesa, que se opõe ao regime, e não tente sequer conquista-la com ilusões. É o único toque que poderia dar novidade e abertura ao seu consulado…
. . .
Mas no discurso inicial pouco tempo perdeu connosco, claro. Nem admira, preocupado com a vigilância do Argus dos mil olhos dos “ultras”. Falou, sobretudo, para essa gente desejosa de escutar os chavões tranquilizadores do costume, que ele utilizou como quem recapitula lugares-comuns necessários: o “génio” do Moribundo, a continuação da guerra em África, o olho posto nos perturbadores da retaguarda e a defesa da Ordem pública para gozo das “pessoas honestas”, sem esquecer a inevitável condenação do comunismo, “sepultura da liberdade dos Indivíduos”, etc.
E só, em certa altura, para nos passar um vago sabor a mel na boca, se referiu timidamente a “algumas liberdades que se desejaria ver restauradas” (portanto, independentemente suprimidas, ou não?)…
Por enquanto, a subida ao trono de Marcello Caetano trouxe-nos apenas esta vantagem (e não pequena, sejamos justos): o desaparecimento de cena do sinistro Paulo Rodrigues, fascista-nazi de costumes dúbios que, à sombra do ex-primeiro Ministro meio gágá, e sob o pretexto de defender a retaguarda (talvez para consolo da própria “retaguarda”), impunha uma censura infame a todas as manifestações de espírito: teatro, cinema, literatura, jornalismo… Com a supressão desse bistre, vai poder respirar-se se um pouco mais. Não muito, talvez. Mas imenso, para quem vivia com os lábios “por lei cosidos na face”.
. . .
Agora mesmo, sintonizei por acaso a estação clandestina “Portugal Livre” (oriunda de Praga, suponho), onde uma rapariga com voz de exaltação quase histérica incitava aos gritos os portugueses a virem para a rua combater, lutar, morrer, construir barricadas…
Mas isto é connosco? – perguntei a mim mesmo, pasmado com esses heroicos revolucionários emigrados que ignoram o facto comezinho da despolitização geral do nosso povo, que não quer bater-se por coisa nenhuma.
Liberdade, sim – mas oferecida numa bandeja. E mesmo assim com a condição de saber a tirania disfarçada!

domingo, 13 de janeiro de 2013

13 de Janeiro de 1978

• À força de privações, desenganos, frustrações, perfídias, ciúmes (justificados ou não), ausências e separações prolongadas, e desigualdades fracassantes, o objecto do amor, a pessoa amada, transforma-se num ser odiado. 

sábado, 12 de janeiro de 2013

1968, 26 de setembro

Hoje, dia histórico.
Às 9.30 da noite o Presidente da República, com voz aos tropeços nos soluços, anunciou a exoneração do Salazar e o advento do Marcelo à Presidência do Conselho. E assim o Carmona III nomeou o Salazar II.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

11 de Janeiro de 1978

• Estes grandes Poetas do Amor, que tu dizes adorar, passavam o melhor do seu tempo no convívio de meretrizes. Depois, saciados ou enjoados, iam para casa compor os seus devaneios líricos para o uso de leitoras (como tu) inocentes ou insatisfeitas. Assim ganharam fama – e bom dinheiro.

• Ao cabo de contas, o orgasmo, hoje tão discutido, é a única compensação gratuita (mas nem sempre!) que a Natureza nos deu para os infinitos sofrimentos que a vida nos inflige. Pode um Deus (que nos dizem criador e pai!) castigar-nos por usufruirmos de tão escasso e efémero prazer? (Palavras de uma freira secularizada.) 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A RAPOSA E O MENINO


Como sempre o tenho feito, também este ano vim passar o Natal à aldeia. Costumo dizer, na brincadeira: para mim, Natal fora da aldeia, não é Natal. Natal é a festa do Menino. Ora foi aqui que eu fui menino.
Nesses recuados tempos, Peireses era uma aldeola tão isolada e perdida no mapa, que nunca o Pai Natal por aqui passou. Também, se passasse, não encontraria nas chaminés, e eram muitas, um sapatinho para amostra. Todos nós andávamos de tamancos.
Era de tamancos que íamos beijar o Menino à capela. Aquilo era um estrépito de tamancos nos taburnos de granito, que até os santos dos altares nos faziam carranca. Só o Menino, de costas nas palhinhas do presépio, continuava a sorrir o seu eterno sorriso estereotipado.
Bem te percebo, maganão – dizia-lhe eu em pensamento, enquanto lhe beijava o pezinho rubicundo , ris-te, porque sabes que os Reis Magos vêm a caminho e te vão encher de presentes. Bem podias dividir comigo, felizardo. Dizem que vieste para me remir do pecado. Preferia que tivesses vindo para me dares uns socos novos, que estes que trago andam nas lonas e já metem água.
A bem pouco se resumiam as minhas ambições. Mas eu acreditava e era feliz.
Acreditava no nascimento do Menino, na vinda dos Reis Magos.
Passei horas a olhar para o céu estrelado, à descoberta da Estrelinha do Oriente. Deve ser por isso que eu sempre fui um cabeça no ar. É por isso que eu ainda hoje conservo o hábito de olhar para o céu estrelado.
Assim aconteceu ontem, noite de Consoada. A ceia foi superabundante, abusei e custou-me a conciliar o sono. Farto de dar voltas na cama, levantei-me e vim para a janela. Em noites frias, límpidas e sem lua, o céu de Barroso é um dos mais belos e misteriosos do universo. Há uns setenta e cinco anos que, nesta quadra natalícia, o observo atentamente. Pois bem. Nunca vi estrela nenhuma a mover-se pelo firmamento ao ritmo duma cáfila de dromedários ajoujados de ouro, incenso e mirra. De modo que, a mítica Estrelinha do Oriente a indicar o caminho de Belém aos Reis Magos, deve ser fábula.
Cansado do espectáculo, ia a retirar-me da janela, que vejo eu, rua acima? Uma raposa… Quedei estupefacto. Teria visto bem? Uma raposa rua acima e nem um latido de cão, um alvoroço de galináceos nas capoeiras, um tiro de espingarda?
Abri a janela devagarinho e debrucei-me. Não havia dúvida. Uma raposeta de samarra nova, lépida, despreocupada, com o ar mais inocente deste mundo, rua acima.
Abanei a cabeça, ainda tonta do vinho da ceia, pensativo e incrédulo. Irá ela visitar o Menino? Estarei eu perante um milagre? Será que afinal, esta sempre é a «Noite Santa», a «Noite de Paz», a «Noite da Concórdia», não só entre os homens, mas também entre homens e bichos e entre bichos, homens e Deus?
Apeteceu-me descer à rua, ir atrás da raposa, pegar nela ao colo, beijá-la, perguntar-lhe se já tinha ceado, se precisava dalguma coisa. Mas a geada bateu-me em cheio nas orelhas e obrigou-me a fechar a janela e correr para o leito.
Adormeci feliz, a cantarolar o «Glória a Deus nas alturas e Paz aos homens e aos bichos na terra».
Acordei com o sol de Inverno na vidraça e grande alarido na rua. Fui ver o que era. Uma vizinha a maldizer a porca da vida: «Oh, gente! Não quereis lá ver? Com a azáfama da Consoada, esqueci-me de fechar as galinhas. Sabeis o que me aconteceu? Veio a raposa e levou-mas todas. Vinte e duas! Excomungada! Teve melhor Natal do que eu… De veneno lhe sirvam!» E chorava desconsoladamente.
Fiquei desiludido. Afinal, o milagre estava explicado. Ora cebolório!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 76 e s.)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Galáxia esconde 17 mil milhões de planetas do tamanho da Terra

Um estudo divulgado esta semana conclui que uma em cada seis estrelas da nossa galáxia pode ter na sua órbita um planeta do tamanho da Terra, o que quer dizer que podem existir 17 mil milhões de planetas com essa característica.

18:44 - 08 de Janeiro de 2013 | Por Notícias Ao Minuto

Uma pesquisa recente revela que podem existir 17 mil milhões de planetas do mesmo tamanho que a Terra na nossa galáxia.

Os cientistas chegaram a este número graças ao telescópio espacial Kepler, que vigia uma parte fixa do céu desde o seu lançamento, em 2009, captando mais de 150 mil estrelas no seu campo de visão. O equipamento de observação detecta nomeadamente a quase invisível redução na luz de uma estrela, que acontece quando um planeta passa à sua frente.

O astrónomo François Fressin, que descobriu o primeiro planeta do tamanho da Terra através do Kepler, começou a tentar encontrar não só os astros que poderiam ser planetas, mas também quais os planetas que poderiam não ser visíveis ao telescópio.

"Nós apenas vemos os planetas que estão em trânsito com as suas estrelas hospedeiras, que são estrelas que têm um planeta bem alinhado para que nós o vejamos. Para cada um deles, há dezenas que não estão nessas condições", explicou o especialista, citado pela BBC.

domingo, 6 de janeiro de 2013

6 de Janeiro de 1978

• «Já chove, já neva, já venta, já troveja, já relampampeja lá para trás da igreja.» (Folclore de Góis, séc. XIX.) 

sábado, 5 de janeiro de 2013

BALADA DA NEVE


Datem leve, levemente,
Como quem chama por mim…
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim…

É talvez a ventania;
Mas há pouco, há poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho…

Quem bate assim levemente,
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento, com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu,
Branca e leve, branca e fria…
–  Há quanto tempo a não via!
E que saudade, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pèzitos de criança…

E descalcinhos, doridos…
A neve deixa inda vê-los
Primeiro bem definidos,
–  Depois em sulcos compridos,
Porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dais tanta dor? !…
Porque padecem assim? !...

E uma infinita tristeza,
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza…
–  E cai no meu coração.


AUGUSTO GIL

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O VELHO JANDIAS


Durante todo este mês de Fevereiro os locutores da televisão nos martelaram os ouvidos com a sugestiva e originalíssima frase: «Está um frio de rachar!»
Rachar o quê? Lenha para o lume, naturalmente.
De rachar ou não, durante este mês de Fevereiro, os termómetros desceram aos dez graus negativos na minha aldeia. Mas sabem lá os senhores da televisão onde fica a minha aldeia? Conhecem Lisboa, o Porto, a serra da Estrela e pouco mais. E o partidão que eles têm tirado dos zero graus de Lisboa e arredores para gargantearem lamentações de Jeremias sobre a desgraça dos velhos que não dispõem de roupa para o corpo nem lenha para o lume e das crianças que se vêem obrigadas a frequentar escolas sem aquecimento suficiente.
Que pena no meu tempo não haver televisão! Estou mesmo a ver os trenos que esses corações sensíveis não teceriam sobre a desventura dumas criancinhas que percorriam diariamente vários quilómetros de maus caminhos para frequentarem uma escola, já não digo sem aquecimento, luxo ao tempo desconhecido, mas sequer uma retrete. Quando a necessidade apertava, e a professora deixasse, corríamos atrás daquelas paredes e toca a despachar.
E não me lembro de algum de nós, e éramos uns quarenta, de ambos os sexos e das quatro classes, se queixar do frio. Bastava que nos dessem cinco ou dez minutos para correr e saltar no largo e regressávamos com as pilhas carregadas de calorias para o resto do dia.
Pudesse eu hoje fazer o mesmo. Infelizmente não posso. Aí é que os velhos estão em desvantagem. Quanto às crianças das escolas, deixem-nas correr que elas aquecem.
E a propósito de velhos e frio, vou contar uma passagem da minha luminosa infância.
Teria eu uns cinco ou seis anos e frequentava o jardim-escola do monte atrás das vacas. Um dia fui com elas para Castanheira. Do outro lado da parede guardava as dele o velho Jandias, de Medeiros, aldeia contígua à minha. Fazia o tal frio de rachar e eu cabriolava lameira acima e abaixo, para aquecer. Às tantas fez-me espécie que o meu colega de pastoreio se mantivesse muito quieto e encolhido de encontro ao tronco dum carvalho. Aproximei-me. O homem vestia capa de burel já esgarçada no capuz e nas ombreiras, camisa de estopa a pedir barreta, jaleco e calças de estamenha com remendos sobrepostos e não usava carpins. Viam-se-lhe os calcanhares cheios de calosidades e imundícies a sobressaírem duns socos abertos forrados de palha. Choravam-lhe os olhos e o nariz e todo ele tremia e matraqueava os dentes como se estivesse com sezões. Assustei-me:
Está doente, Ti Jandias?
Não. Estou com frio.
Porque não dá uma corrida para aquecer?
Oh, meu homem! Isso foi tempo… Agora as pernas já me não permitem floreados desses…
Na altura não compreendi. Hoje compreendo perfeitamente. Só é pena ser tanto à minha custa…[1]
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 49 e s.)


[1] Imitação de Luís de Camões.
«Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não o quisera eu tanto à vossa custa»
       Soneto n.º 177.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

3 de Janeiro de 1978

Pechisbeque: Liga de cobre e zinco a imitar o ouro… besouro. Do nome do seu inventor, Pechinbeck. Roscofe: Coisa ordinária, de baixa qualidade, talvez do nome Roskov ou Roskob, marca de relógios baratos. Mas será que bera, igualmente pejorativo (jóias beras, etc.), deriva do nome dos famosos diamanteiros sul-africanos De Beers


• Para alguns, a liberdade de expressão, como outra qualquer, consiste em reprimir ou suprimir, no próximo, a liberdade de expressar as suas próprias ideias! (s/d) 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

2 de Janeiro de 1978

• «E julga o amigo que poderia haver em Portugal, por exemplo, um Heinrich Böll?» «De modo algum. Não só devido à falta, entre nós, de situações e caracteres apropriados, mas porque, se ele aparecesse, ninguém daria pela sua presença. Ou seria imediatamente esborrachado pela influência corrosiva, destrutiva, dos nossos pontífices literários – críticos, professores, académicos, dicionaristas, fundacionistas… enfim, pelos empenachados Acácios que em todos os sectores desde há muito nos governam!»
• «Como autênticos anarquistas cristãos – agnósticos, é claro; ou para precisar melhor: anarco-ético», disse-me o filósofo, pousando em mim um olhar sereno e grave, «repudiamos a violência seja em que forma e a que pretexto for. Somos não só contra o Estado, o Governo ou a Autoridade, mas também contra a Política, os políticos e os Partidos, cuja única finalidade é conquistar o Poder para o exercerem sobre os outros homens. Por isso não aspiramos a governar nem temos planos de governação. Embora em graus diversos, ainda quando nos pareçam úteis ou necessários, todos os governos são maus: deixando-lhes as respectivas responsabilidades! Representamos aquilo que Alain chamou L’Homme contre les Pouvoirs. As nossas armas são a indiferença ou desprezo pelos que governam, o protesto ou contestação, e nos casos extremos a resistência ou desobediência civil. Mas nunca o terrorismo, que acaba sempre no crime ou na conversão oportunista. Tal é a nossa “religião cívica”.» Nisto, acordei a meditar na seriedade e nitidez de certos sonhos. 

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Coimbra, 1 de Janeiro de 1981

– São duas da manhã. Acabei o ano velho de caneta na mão e entro no novo da mesma maneira. O alvoroço festivo lá de fora não interrompe a escrita. Vai-a pontuando apenas de realidade. Sempre gostei de sentir o compasso do concreto a pautar-me a grafia. Fico mais seguro no mundo e mais lembrado de que a prosa e os versos são para ser lidos por gente de carne e osso, tão carente de comunicação como eu. Sei que a literatura tem vertentes de solipsismo que levam directamente ao inautêntico e ao ilegível. Por isso, mesmo nas horas mais egotistas, nunca isolei a alma em torres de marfim. Mas é bom que a pressão das circunstâncias me ajude nessa perseverança. Sem referências palpáveis, o homem é um traidor nato à sua própria verdade. E quantas vezes é pela labilidade do verbo que a traição começa…