segunda-feira, 18 de abril de 2011

José Rodrigues Miguéis / José Saramago (1960-01-29)

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Lisboa, 29 de Janeiro de 1960

Meu caro Amigo,

Ouso crer que no meio dos seus mil afazeres (só a Escola valerá por 999!) não lhe terá passado despercebido o meu silêncio. Uma gripe seguida de uma pequena pneumonia secou-me a veia epistolar e a tagarelice e reduziu-me à triste condição de acamado, com suores na fronte e frio nos pés. Misérias desta nossa máquina que uma simples dor de dentes arruma no sótão das velharias!
O nosso amigo Canhão substituiu-me1 nas notícias escritas, mas uma omitiu por supor que eu já a tinha dado: a recepção, a tempo e horas, do Passageiro do Expresso. Ainda não lhe tocámos, embora eu já o tenha lido. A sua ironia deixa a escorrer sangue meia dúzia de mentiras sociais, daquelas que vão embaraçando a vida da gente. Aquele pastor de almas que foi pelo testamento é que me parece sangrento de mais para o Santo Ofício destes sítios. O mais prudente, de facto, será cortar. Pessoalmente, eu sou pela publicação total de tudo, mas há outras razões, um pouco envergonhadas, sim, mas ponderosas. Uma apreensão faria mal a todos nós.
Conto que em breve possamos iniciar a composição. Quanto à apresentação do livro, bem estudadas as coisas, afigura-se à equipa da COR que o Meia Cara abriu um caminho que deve ser continuado. É a sua colecção, aquela que acolherá o que a Latitude não puder receber. Talvez se use um papel menos bom, mas nas linhas gerais será o mesmo estilo. Publicada isoladarnente, com outra vestimenta, pareceria o princípio de nova colecção, e o tempo não vai – ainda que o contrário pareça a uns tantos Gallimards cá da terra – para colecções novas. Seja como for, verá que gostará do seu Passageiro quando ele desembarcar...
A Escola, quando abre? A 3.ª edição da Léah sai de capa envernizada, toda triques-à-beirinha, de cinta flamante lembrando o prémio e informando o passante de que é 7.º, 8.º, 9.º e 10.º milhares. Um best-seller!
Conto em breve ser mais prolixo. Até lá, fica um abraço do seu dedicado amigo e admirador

Saramago
1 À margem, Miguéis escreve: «Não!»

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