terça-feira, 8 de março de 2011

Vergílio Ferreira (8 de Março de 1989)


8 - Março (quarta). Queixar-me — que fazer? Tenho o cérebro bloqueado, esforço-me brutalmente por atravessar a sua espessura e ser no fim claridade do pensar. E o rumor que o abala todo. E os guinchos nos ouvidos como uma zoeira de febre. Serei eu ainda alguma vez? Na inteireza de mim? E tenho coisas ainda a dizer. Tê-las-ei até ao último alento de vida. Porque o que preciso de dizer não se limita na vida e vai para lá da morte. Porque é isso não do que há a dizer, mas da própria substância de tudo o que é. E isso não cabe numa vida humana. Talvez os grandes homens precisassem disso porque o que disseram bastava — e tanto, que bastou. Mas eu não sou grande e preciso assim de continuar a explicar-me ainda depois da morte. E só assim talvez o que há em mim de ser se pudesse cumprir como ser.
*
Hoje escrevi umas linhas nestes três livros que escrevo: o romance, o livro (já extenso) de «reflexões» e este suplemento do diário. E isto foi tão difícil ou prodigioso pela necessidade de atravessar toda a espessura do cérebro, que foi talvez de uma felicidade que não existe nesta palavra que digo. Porque estar vivo não é ser feliz mas a própria realidade de ser, para a qual não há outra possível designação a não ser a de ser. Hoje fui… 
conta-corrente - nova série I (1989)

Sem comentários:

Enviar um comentário