sexta-feira, 18 de março de 2011

Vergílio Ferreira (18 de Março de 1989)

18 - Março (sábado). Nos arraiais comunistas agora é o descalabro. Tudo quanto outrora se dizia ser «anticomunismo primário» ou «propaganda burguesa» é hoje reconhecido pelos próprios governantes dos países de Leste. Na Hungria diz-se agora que a revolução de 56 não fora «a soldo do imperialismo», mas de carácter popular e admite-se já o pluripartidarismo. Na Polónia é o que se sabe. Na Jugoslávia um governante (ou o primeiro-ministro?) diz que «o socialismo já deu o que tinha a dar», etc. etc. O Cunhal foi a Moscovo tratar-se ou operar-se a um aneurisma e receber o penduricalho do Lenine que lhe foi dependurado por um funcionário subalterno e regressou pálido, menos decerto da operação do que da consciência desvitalizada. E agora? Os imbecis não terão problemas como é próprio da imbecilidade. Mas os outros? E um tal Lula que veio aí do Brasil a aquecer-se na hora revolucionária de cá e pretende instaurar lá o falhanço do Leste? Mas o grande problema é outro: o de pôr a vida a funcionar, sem a atrelar a uma carroça. O grande problema é descobrir que a vida tem o valor em si mesma e não para lá dela, e instaurar aí toda uma razão de ser e de estar contente e de não ser estúpido nesse contentamento. Mas o grande problema é que (Interrompido).
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O Expresso de hoje, na crónica do José Rabaça, traz uma variante da anedota que atrás referi (ou não referi?) dos anjos que eu me não lembrava de ter enviado à Agustina e ao Saramago a dizerem que eles eram os maiores escritores portugueses. Desta vez a coisa passa-se com o Saramago e o Pires — logo, Agustina excluída. Mas não há anjos. Há que cada um deles diz ter falado com Deus e que este lhes dissera que cada um (em datas diferentes) era o maior. É quando eu digo que há muito tempo já eu não falava com aqueles senhores. Menos subtil, mais maliciosa, mais equívoca para mim, suponho.
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O Lúcio deu-me um cinto. Fiquei intrigado — a que propósito? Porque lhe apetecera. Mas fiquei a matutar. E explosivamente descobri. Era por ser «o dia do pai» — que afinal é amanhã. Disse-lho. Riu-se. E ficou surpreendido, julgava que era hoje.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 52 e s.

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