domingo, 20 de março de 2011

Húmus (1917) - PAPÉIS DO GABIRU, 20 de Março

Como explicar esta horrível contradição? Amei-a, amei-a sempre e pude desejar a sua morte! Amei-a e no fundo de mim próprio o outro ser esfarrapado, primeiro baixinho e depois mais alto, exigiu a sua morte.
Um dia — e tu compreendes-me, tu que tens desejado também a morte de pessoas queridas — pus-me obstinadamente a pensar: — se ela morresse… — Eram três horas da tarde… Não sei se é a minha vontade — sei que exerço uma influência nefasta nas pessoas que amo. Contra o meu próprio desejo, os meus pensamentos reflectem-se nos seus pensamentos como árvores que se debruçam sobre a água e chegam a turvá-la. O meu horrível pensamento degrada-as. Quando eu lhe falava e sorria, e ela me sorria extenuada e pálida, o meu pensamento era sempre o mesmo e só a custo continha o tumulto dos mortos. E eu sabia que, desde que esse fantasma se pôs a caminho, não o podia deter e não tirava os meus olhos dos seus olhos que exprimiam ternura e espanto.

O pior é o que os seus olhos exprimem — e eu já o não posso deter…

Espera… Quantas vezes me confessaste sufocada de lágrimas, que te vem, não sabes donde, uma vontade de fugir pelo mundo fora para onde ninguém te conheça, deixando tudo e abandonando tudo — fugindo a ti própria?... Para isso bastou aquela folha doirada que o primeiro arrepio de vento despega da árvore e leva sem destino. É essa mesma sensação que todos experimentamos a certas horas em que o universo se nos afigura monstruoso, com uma única certeza — a de caminharmos todos através da incoerência, para a morte. Felizmente essa impressão dura um segundo. Nesse segundo todos ouvimos os passos da Morte e o riso sarcástico do Destino. Somente tu não me podes fugir — nem eu deixar de pensar…

Deixem-me! Deixem-me! Deixem-me só e livre com isto, deixem-me viver para isto! Deixem-me fechado a sete chaves com o sonho que me enche de ridículo, que não existe e é a razão da minha vida. Deixem-me ir para a cova agarrado a este nada imenso que me doirou as mãos e me deixou atónito. Só no fundo da cova é que estou bem, sós a sós, fechado com ele para sempre.

A ternura também cansa. Deixem-me! Deixem-me sonhar!

Este caso é delicado, mas tenho-o como certo, embora me faltem palavras para o exprimir com toda a clareza… É primeiro uma angústia que se insinua. E depois uma força que se substitui a outra força. Há como um assassinato de que se não ouvem os gritos. E por fim um último estertor. Ainda matá-la é o menos. Pior — oh!, pior! — era a expressão que eu lhe lia nos olhos à medida que aquele fantasma avançava na sua alma…

Eram três horas. Estava um dia de Primavera, com esta mesma luz clara e indiferente de todos os dias; as árvores cresciam, o Sol era o frio, o negro Sol que tem assistido a todas as canduras e a todos os crimes da humanidade…

Cheguei a sua casa. Os criados choravam. Ela tinha morrido. A minha dor foi igual a todas as dores. Com desespero a acompanhei à cova, e todos louvaram a minha constância e as minhas lágrimas. Está enterrada ao pé da lagoa verde, sob uma pedra sem nome.
Ela dissera:
— Lá o espero!...
E a mãe contou-me:
— Eram três horas da tarde…

 Raul Brandão (1867-1930)

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