domingo, 13 de março de 2011

Vergílio Ferreira (13 de Março de 1989)

13 - Março (segunda). Falhei a vida porque a não soube viver, diz-se com frequência e adianta-se às vezes como se deveria ter vivido. Não consigo achar nisto sentido algum. Vivi a vida com o prazer que podia nas possibilidades que tive nesse viver. Lamento é as possibilidades. Mas agora, retroactivamente, isso quase me não tem sentido. Porquê? Não sei. Talvez porque os prazeres que não tive por isso, hoje os não teria tido também, justamente por já tê-los tido, se tivesse. É a altura de se terem grandes propósitos, com a sabedoria bastante que lhes dê autoridade. Não tenho conselhos a dar, eu. A não ser o de firmar a famosa felicidade menos na ambição de grandes coisas do que na capacidade de renúncia a elas. De resto, o que importa para se realizar uma vida não é bem a ambição mas a obstinação. Mas para haver obstinação, é precisa a paixão absorvente, a obsessão, a impossibilidade de entender a vida fora dela.
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O Mundo unifica-se, as ideologias são espécies quase extintas, há quase uma língua universal que em vez do esperanto foi o inglês. E na nossa medida europeia o fenómeno institucionaliza-se. Que é que nos espera no domínio cultural, tradicional, mesmo linguístico? Que significado terá por exemplo amanhã e um pouco já hoje um livro do Aquilino? as nossas lutas tribais? a nossa consciência geográfica e nacional? Na reflexão sobre o Mundo que se nos levanta no domínio das ideias fundamentais ou dos valores, perde-se-nos quase de vista a questão mais próxima dos destinos da pátria. Pouco tenho pensado no meu país, pouco nele tenho encontrado de motivação reflexiva e detenho-me apenas no domínio afectivo de tipo carnal. Mas a CEE com as suas múltiplas implicações e a sua constante presença televisiva no noticiário, tem-me feito erguer os olhos do meu raio do pensar. E por um vício congénito, fui hoje dar aos limites do problema no Mundo. Mas voltando aqui: que vai ser da imensa multiplicidade do que nos define, nos tem sido, nos impregnou desde a nascença, do espírito que nos anima todo o ser? Que será ser português daqui a cem anos? Que vai significar a relação suspeitosa com a Espanha? Que vai significar haver Portugal? Páro aqui. Está um dia sombrio depois do sol estival de ontem. Não quero mais sombra na alma. Já tenho que chegue.
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Encontrava-o com frequência pela manhã, quando ia buscar o jornal. Era alto, poderoso, tinha a passada forte e uma peitaça omnipotente. Morreu que se fodeu.
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Fui às livrarias Barata e Bertrand na Avenida de Roma, sobretudo para testar a minha pequena melhoria no distúrbio cerebral. Aguentei-me um pouco. Bebera vinho ao almoço, tomara café, fumara um cigarro. Devia pois dar estoiro. Aguentei-me razoavelmente. Mas não é disto que desejo falar. Quero é referir que no remexer dos livros, um pouco aturdido da cabeça, decerto, descobri subitamente que nada daquilo me interessava já. Conhecia vários livros, mas não era isso. Conhecia-os, desconhecia outros, mas todos eles me falavam de qualquer coisa que passou. Que outros livros me conquistariam? Não sei. Deviam ser outros livros, de um mundo novo, de uma realidade estranha como estranho me é o mundo de hoje. É assim como se tudo girasse ainda em volta de um mundo révolu, morto, absolutamente alheio ao que me propunham ler. Tudo passou. Nada tem já sentido, tudo é já de uma história morta como as histórias para crianças. Nós estamos na entrada de um mundo novo, estranho, e tudo o que se propõe à leitura não tem já significação, a não ser para retardados ou distraídos. Nós entramos num mundo que nada tem já a ver com o que passou e agitou a nossa vida de outrora, mesmo a recente e que já tem a idade de outrora. O Mundo transformou-se mas não temos ainda ideias ou outra questionação para acompanhar. Nós tentamos estabelecer-nos nesse novo mundo e o que nos oferecem ainda são velharias. Que significado tem o que nos ocupou há dez anos, vinte anos? Nós estamos numa nova era e entramos nela desarmados, sem ideias orientadoras, mesmo da nossa desorientação. Porque o mais que se nos diz sobre isso é que tudo está em dissolução e é mesmo já possível, com a tranquilidade de quem fuma um cigarro numa esplanada, dizer-se-nos que a arte já não tem sentido nenhum. Há já quem o diga. É um absurdo clamoroso, mas há já quem o escreva com a serenidade com que se nos anuncia sol ou chuva para amanhã. Fui às livrarias. Fui a lojas de ferro-velho. Nunca as amei.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 46 e ss.

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