segunda-feira, 14 de março de 2011

Vergílio Ferreira (14 de Março de 1989)

14 - Março (terça). In illo tempore, no tempo em que eu andava em Coimbra, havia lá um professor de Letras que foi meu e se chamava Vergílio Correia. Era um homem com certa celebridade para fora do magistério na sua especialidade que era a História de Arte e que a morte por isso conservou um pouco até hoje. Porque a maioria dos mestres, chegados à sua hora, a morte pega neles, rasga-os em quatro e atira-os para o lixo. Mas como mestre propriamente dito, o Vergílio Correia não era assim muito de espantar. Tinha, todavia, como nem todos, o bom hábito científico de nos dar bibliografia. Aliás, ele foi meu professor de História Oriental, que era salvo erro do Egipto, de Paleografia e de uma outra disciplina que não lembro. Mas o que lembro é que não sei por que artes de prestidigitação essas várias disciplinas tratavam aproximadamente do mesmo. Tinha, no entanto como disse, o hábito honesto de fornecer bibliografia. Nós não a líamos, é claro, porque isso era tarefa dos sebenteiros, os organizadores da sebenta, que era tarefa rendosa em paciência e nos dois valores acima do aluno mais classificado, pela razão óbvia de que, se faziam a sebenta, tinham de saber mais do que ele. Nós folgávamos nas aulas, enquanto os sebenteiros se desunhavam a tirar apontamentos. Vergílio Correia dava as aulas de pé e de olhos fechados. A princípio supúnhamos que se ele fechava os olhos, era pela mesma razão por que os fecha o galo quando canta, ou seja, como se dizia, porque sabia a música de cor. Mas não era. Numa pequena estante sobre a secretária, como um pouco as do missal na missa, tinha ele umas folhas com os seus apontamentos. Então, enquanto falava, partia do lado esquerdo com a cabeça de olhos fechados, abria-os à passagem pela estante e fechava-os outra vez ao rodar para o lado direito. Depois voltava de lá com os olhos fechados, tornava a abrir, tornava a fechar. Ora um dia reparámos que os sebenteiros não trabalhavam. Sentados no ripanço, olhavam descansados os balanços do professor para lá e para cá até ao toque de saída. Nós ficámos aterrados e quisemos saber. Mas eles, com uma altivez quase de lente, sem dizerem palavra, erguiam a mão a mandar-nos sossegar. E quase no fim do ano, quando foram submeter ao mestre as folhas para aprovação, o pobre homem ficou siderado. Havia mestres que de toda a bibliografia com que nos alimentavam o saber, subtraíam subtilmente o nome do livro por onde faziam as lições, levando-o mesmo para casa da biblioteca, se ele aí existia, para a hipótese de haver algum indiscreto que o quisesse ler. E Vergílio Correia, com a prudência dos sábios, não indicara o livro do seu saber. Mas deixara-o imprudentemente na biblioteca onde os sebenteiros conseguiram descobri-lo. E então foi simples: copiaram-no. De modo que, quando o mestre leu as folhas para o visto, apanhado em flagrante delito, fez apenas a ironia que pôde:
— Deviam era ter posto aspas no princípio e no fim.
E no ano seguinte teve de mudar de cábula.
Porque o conto? Não sei. Talvez por ter lido há pouco umas crónicas do Falcato sobre o Namora, cheias de piada. Talvez para ver se eu também a tinha. (Creio que não.)
conta-corrente - nova série I (1989), p. 48 e ss.

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