segunda-feira, 21 de março de 2011

Vergílio Ferreira (21 de Março de 1989)

21 – Março (terça). É Primavera! É Primavera! Deixem-me ser contente por cima do que o não é. Há mais de um mês que não vamos a Fontanelas, que é onde a Primavera se deve ter estabelecido. Porque aqui em Lisboa o cimento não dá flores. Mas tive o descomando cerebral ou lá o que foi e a Regina também não está operacional. De modo que ainda não fomos ver o trabalho primaveril. Do miolo estou um pouco melhor e a Regina dos seus achaques também. E assim é possível que em breve arrumemos a bagagem e vamos ver a Natureza. Mas entretanto vai-se vendo daqui em imaginação, que é o que me tem valido em todas as falhas do ver natural — que é, aliás, sempre ainda mais deficiente. Em todo o caso uma flor ou um pássaro têm de se ver e ouvir para depois se imaginarem. Uma flor. Há quanto tempo não vejo uma com um bocado de campo à volta. Mas é Primavera e vou pensar a fundo que o é para me alegrar como deve ser. Porque só a Primavera é alegria em si, gratuita e sem significação e toda a significação, mesmo para cima, é sempre um pouco para baixo. É Primavera! É Primavera! A Terra existe e flores e animais. E o homem que também é de existir. E tudo o mais que pouco tem a ver com a conversa.
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Ó Coimbra, cidade mítica da juventude de quem aí a juventude passou. Com a amplitude do mito, cada um tem aí o que lhe coube. Há decerto os da boémia, do vinho do sonho bebido no deserto das noites, os das forças e das desordens, os das tertúlias, e dos seus projectos de grandeza nas letras e artes, os da agitação política quando a política era a grandeza maior, e decerto os dos triunfos académicos, os «ursos» projectados para lentes. Para mim, como um dia disse, Coimbra, só no ressoar do seu nome tem já um timbre de guitarra. E foi só o que me ficou — uma guitarra imensa. Abrindo num acorde pelo céu.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 55 e s.

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