20 - Março (segunda). E verdadeiramente espantoso como as pessoas não vêem que tudo acabou. É realmente inacreditável que se não tenha a evidência de que todo o nosso tempo deixou de funcionar — ou serei eu que estou doido? A filosofia já não filosofa, a arte não sabe que fazer e tudo o mais assim entrou no desemprego. Mas no meio disto há ainda um ou outro parvo que continua a agitar-se como se não fosse nada com ele. A História parou! A gente pergunta-se é apenas onde é que estava o motor. E parece que estava no comunismo — sim, sim. Mas aconteceu curiosamente que pelo método científico da praxis marxista, ou seja pela dialéctica da ideia / acção, ao fim de 70 anos verificou-se que o marxismo era um lapso. Foi o feitiço que se virou, etc. E agora verificamos que era em função dele que tudo mais ou menos se mexia. Uns para terem emprego na vida, outros para o combater, outros para estarem com ele mas não estavam, outros para defenderem as almas desfavorecidas e serem contra elas, outros para se governarem com a arte socialista e defenderem o socialismo e terem piscina e bródios em alto estilo, outros para distribuírem os sentimentos e tê-los no activo, outros para exercerem a oratória nos comícios, outros para conspirarem em cafés — e todos, em suma, para se distraírem da morte. Mas agora já não há nada. Agora não há nenhum ponto de referência e não se sabe o que fazer da humanidade que lhes calhou. Mesmo os pequenos focos de incêndio aqui e além já não entusiasmam os bombeiros. Um silêncio gelado cobriu tudo como um nevão, uma paralisia geral imobilizou as consciências. A gente olha atrás a farrapada que ficou e a única coisa que se deseja é o serviço municipal de limpeza. Tudo envelheceu atrozmente e perdeu significação. E todo um século de actividade é para deitar fora. Isto é-me evidentíssimo, mas ninguém se dá por achado. O Mundo parou, ó imbecis! A História deu por encerrada a sessão. E deita tudo fora! É puxar pela imaginação e começar pelo princípio. Os politiqueiros não querem ir para o desemprego e politicam ainda. E têm «ideais». E continuam com a mania de que tudo se vai arranjar. Não vai arranjar nada. Toda a traquitana, toda a tralhada que se acumulou não tem já préstimo nenhum. Porque tudo tem de se criar de novo. Absolutamente tudo. Vai ser difícil. Mas não há outro remédio. E é só.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 54 e s.
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