Refugiei-me uns dias na aldeia. Em cura de silêncio. Não obstante, fartei-me de dar à língua e à perna.
Logo de chegada, um acontecimento que, noutras terras e com outras gentes, seria notícia de abertura em todos os noticiários audiovisuais ou escritos. Em Peireses, mereceu breves comentários dos vizinhos e caiu no esquecimento.
Contaram-me assim a coisa. Um tal Joaquim, natural de Fafe ou arredores, trabalhador rural e a viver sozinho, desapareceu em Abril passado. Viram-no rua abaixo, lusco-fusco, descalço. Alguém lhe perguntou onde ia.
— Saber das toiras — respondeu.
E nunca mais ninguém o viu. Diga-se, em abono da verdade, que também ninguém o procurou.
Apareceu no pretérito dia 2 de Agosto num lugar chamado Pedra da Sesta, na mera do Ladrugães, rente com a parede, entre o restolho. Segaram e recolheram o centeio sem darem por nada. Foi um garoto de doze anos que, indo a passar e vendo uma camisola e umas calças, se lembrou de lhe meter uma forquilha que levava. Lá estavam os ossos do Joaquim. Reconheceram-no pela roupa. Tinha à volta de sessenta anos.
Um dos muitos que passaram sem deixar qualquer rastro.
Espero que Deus seja mais generoso com ele do que foram os homens.
Avante.
Um domingo de tarde, ia eu a caminho do Crasto quando, à distância de cem metros, avistei a silhueta dum pote numa varanda.
«Que belo pote para a minha lareira» — disse para comigo. Grande, talvez de almude, e bem feito. E fora de uso, naturalmente. Aproximei-me. O meu vizinho José Rua dormitava à sombra do alpendre. Suavizei o passo, para o não acordar. Mas ele abriu os olhos.
— Grande soneca! — disse eu, à laia de saudação.
— Temos de aproveitar os domingos que, aos dias soltos não há vagar.
Estive tantos anos fora da aldeia que, agora, na velhice, os companheiros de infância me tratam por você. Eu correspondo no mesmo grau de etiqueta.
Ele aproximou-se da cancela para me cumprimentar. Conversámos.
— Quer-me vender o pote? — disparei eu sem mais preâmbulos.
Ele olhou para mim dum modo especial, quase solene, e respondeu-me, acentuando todas as sílabas.
— Ofereço-lho.
— Não aceito. Faça preço.
— Já i vieram.
E nomeou meia dúzia de indivíduos interessados no pote.
— Não cedi. Mas você merece-mo.
E citou dois ou três favores que, no entender dele, me devia e de que eu me não lembrava.
— E a mulher não vai ao contrário. Ó Maria? — chamou.
A Maria veio a limpar as mãos ao avental. Que estava a lavar a louça.
— Aqui o doutor está interessado no pote.
— Sabe? O pote já era dos meus pais.
O marido atalhou-a:
— Eu já dei a minha palavra, mulher.
Ela mudou imediatamente de assunto. Recordámos coisas engraçadas dos nossos tempos de pastores.
Às tantas caiu a conversa em como as coisas mudaram. Para pior.
— Dantes, podia a gente dormir descansada que ninguém roubava um alfinete. Agora!
E contou vários casos. Fixei um por me parecer paradigmático.
Em meados de Agosto apareceu em Peireses um cavalheiro novo, bem trajado, ao volante dum bruto Mercedes.
— Há por aí quem venda batata? — perguntou a um lavrador que ia passando.
— Batatas, por ora, ainda estão na terra.
— Bom.
E o desconhecido disse vir de Montalegre, onde tinha ido visitar uma pessoa importante, cujo nome citou, deu a entender que era médico no hospital de Chaves, que adorava batatas de Barroso, etc. e coisa.
O lavrador, fiel ao preceito que nos ensina que devemos ter um amigo nem que seja nos infernos, resolveu logo, no foro íntimo, fazer uma franqueza ao pretenso clínico do hospital de Chaves. Chamou pela mulher. Que trouxesse um saco e uma cesta.
E como o nabal ainda ficasse afastado e o estradão estivesse bom, foram todos de Mercedes.
Encheram o saco. O próprio desconhecido ajudou a içar o fardo para a mala do carro.
— Ponham também a enxada e a cesta.
Para regressarem todos de carro, subentendia-se.
E foi o golpe. O vigarista correu para o volante, arrancou e… lá foram batatas, saco, enxada e cesta.
— Ó gentes! Vir de Mercedes para dar o golpe num saco de batatas! É obra…
Entardecia.
— Bem. Vou pedir ao meu irmão que venha pelo pote na furgoneta.
E fui, para regressar minutos depois.
Quando me aproximava, vi grande polvorosa à porta do José Rua.
— Eh, que foi? Aconteceu alguma coisa?
Com aquele instinto de limpeza comum às boas donas de casa, a Maria quis dar uma escarqueijadela ao pote antes de mo entregar. Vai a erguer o testo, salta de lá um enxame de vespas. A Maria deixou cair tudo e bateu em retirada. Mas não tão lesta que não sofresse algumas ferradelas.
O meu irmão, que é alérgico às picadas de insectos, correu a fechar-se na cabina. Todos os outros nos mantínhamos a uma distância prudente.
E foi então que o José Rua avançou para o inimigo a peito descoberto:
— Oh, com um carago ou dois. Então nós temos medo a uma vespa? Botai cá um caldeiro de água.
A Maria passou-lhe o caldeiro. E o José Rua, num gesto rápido, afogou as malditas.
Acho que os Barrosões têm de fazer aos vigaristas, o que o meu amigo José Rua fez às vespas: exterminá-los sem dó nem piedade.
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso, p. 27 e ss.
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