quinta-feira, 17 de março de 2011

PAI OU PAIO? (Bento da Cruz)

Já daqui mandei recado à Junta Autónoma para, em nome da pureza da língua e da toponímia, corrigir, na estrada Salto-Boticas, as placas que dizem Covas do Barroso e Vilar, para, respectivamente, Covas de Barroso e Vilar de Porro.
Hoje vou falar de outra asneira. Asneira de quem mandou colocar, na estrada Braga-Chaves, a placa Pai Afonso.
Quem escreve, ou manda escrever, coisas destas, é que não deve ter pai. Há anos que esta placa me vem causando engulhos. Outro dia não resisti. «Vou perguntar à aldeia» — disse para comigo. Tanto mais que nunca lá tinha ido. E ainda por cima, o alcatrão do acesso, de tão fresco e polido, está mesmo a tentar as almas.
Mas que ratoeira. Galgados os primeiros metros, o alcatrão cede o lugar a terra batida e mal aplanada. A coisas destas, chamavam-se, nas antigas colónias,  picadas.
Lá fui picando os cavalos, encosta arriba. Valeu-me o tempo ir seco. Valeram-me as vistas. Que deslumbramento! Dir-se-ia estar a ver a albufeira e as aldeias do outro lado de avião. Mas o raio de Paio nunca mais aparecia. Apenas montes e horizontes.
Por fim, atingido o alto, comecei a enxergar vestígios de povoado: um cemitério de vedação ou acrescento recente, uma casa nova, marca maison de emigrante, uma placa Paio Afonso. Mau! Então lá em baixo é Pai e aqui Paio? Que desconchavo vem a ser este? 
Mal paro o carro, arremete de lá um cão lobeiro a latir e a dar ao rabo. Dos que ladram não mordem. Avancei para ele confiadamente. O bicho cheirou-me e deu-se por satisfeito. «É dos nossos» — deve ter dito lá para com ele.
Ao alarme do mastim, acudiu uma senhora de vassoura em punho.
— Bom dia! — saudei.
— Bom dia!
— Oiça lá. Afinal, como é que se chama esta aldeia? Pai Afonso ou Paio Afonso?
— Paio Afonso!
— Mas lá em baixo, na estrada principal, está uma placa a indicar Pai Afonso?
— Disparate! Isto aqui sempre foi Paio Afonso. E continuará a ser.
— Aldeia pequena?
— Pequena e pobre. Sete moradores, catorze residentes.
— E emigrantes?
— Ai isso são mais os de a cavalo do que os de a pé.
— O dobro?
— Sim. Para aí uns trinta.
— E como vamos nós de lavoura?
— Tudo a monte. Ainda há aí uns quatro vizinhos que têm umas vacas e amanham uns campitos, mas, cá na minha, andam a trabalhar para aquecer.
— Então do que vivem?
— Como pode ver por mim, isto aqui é uma terra de velhos. Vivemos da reforma, de subsídios à lavoura, aqueles que ainda a têm, da ajuda dos filhos, conforme Deus é servido.
— Não há crianças?
— Cinco.
— E não estudam?
— Na escola da Venda Nova.
— Como é que vão?
— Vêm-nas aqui buscar. Mas há dias, no Inverno, que nem o carro passa.
— Realmente o estradão não está grande coisa.
— Nem os táxis gostam de cá vir. Outro dia um, para me levar à urgência a Montalegre, rapou-me cinco notas de mil.
Enquanto escutava a minha simpática cicerone, ia examinando a paisagem, essa luminosa e tranquila pai Bai paisagem, essa luminosa e tranquila paisagem de Barroso, encanto dos olhos, deleite da alma. Reparei nos postes da energia eléctrica.
— Mas têm luz?
— Luz e telefone. O que não temos é água. Está a ver a nossa desgraça? Se queremos fazer a vidinha de casa temos de andar a carregá-la a cântaros.
— Já puseram o problema à Câmara?
— Adianta-nos um grosso.
Gostaria de a ouvir, mas estou com pressa. Vou só dar uma vista de olhos à aldeia.
— Vá com Deus. E volte sempre.
A meio da rua parei a olhar para a capelinha de granito e uma senhora, que varria a testada, a olhar para mim.
— Quer ver a capela? — perguntou-me.
— Tem a chave?
— Mas vou por ela ali à vizinha que a guarda.
— Vou consigo.
Passámos por dois pequenos tanques públicos, literalmc literalmente secos, por um bom rego de água corrente.
— Têm muita água? — disse eu.
— De rega, temos com fartura. Em casa é que nem gota — esclareceu a camponesa, a tempo que levantava a cabeça para uma janela:
— Ó Maria?
Assomou uma cachopa ao peitoril.
— A tua mãe está aí?
— Está sim senhora.
— Diz-lhe que traga a chave da capela. A claviculária demorou pouco. É uma senhora de meia-idade, com ar de «Mãe Coragem». Traz duas rilhas a estudar na Secundaria do Baixo Barroso. Queixou-se do mau estado do estradão, da falta de água, do desinteresse da Câmara:
— Quando foi das eleições, andaram por aí a prometer mundos e fundos. Apanharam-se no poleiro, são como os outros. Aumentaram-nos o cemitério e viva o velho.
— Quem é o padroeiro da capela? — perguntei eu, para mudar de conversa.
Santa Cruz e Santa Luzia.
Eu olhava para o templozinho, pouco maior do que um vulgar jazigo-capela e dizia de mim para comigo: «Pequena morada para dois inquilinos…»
Entrámos. As minhas prestáveis acompanhantes mantiveram-se em silêncio enquanto eu examinava a catedral. Um arremedo de altar de oratório doméstico ladeado por duas pequenas colunas despidas de qualquer ornato, um crucifixo de pau artesanal ao alto e, no lugar de honra, ao centro, uma Santa Luzia de palmo e meio com uma espada, proporcionalmente enorme, género faca de cozinha. Dum lado e doutro, suspensas de pregos ferrugentos na tábua gasta, litografias do Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora de Fátima e Santo António de Lisboa. Tudo duma simplicidade comovedora.
Como eu não fizesse qualquer comentário, uma das camponesas esclareceu a minha ignorância: nesas esclareceu a minha ignorância:
— E muito antiga!
— Tem muito valor! — acrescentou a outra.
— Estou a ver. Estou a ver.
Retirei-me penhorado e a pensar naquilo dos Evangelhos: «Bem-aventurados os que acreditam, porque deles é o reino dos céus…»
VIVA PAIO AFONSO!
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso, p. 21 e s.

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