domingo, 27 de março de 2011

José Rodrigues Miguéis / José Saramago (1959-09-16)

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Lisboa, 16 de Setembro de 1959
Meu caro Amigo,

Afinal, a sua ilha «deserta» de não sei quantos milhões de habitantes, para onde algumas vezes lhe ouvi dizer aqui que lhe apetecia fugir, não tem já solidão bastante para o fazer esquecer os 100 terríveis metros da calçada do Chiado, o Chiado-de-Espingarda-ao-Ombro, igualzinho e tão provinciano como o Freixo-de-Espada-à-Cinta! O viajante das sete partidas, o homem instável, o calcorreador de horizontes, suspira pelas raízes que começavam a romper-lhe a sola dos sapatos! Era de esperar: também o pintor enamorado da anamita[1] muitas vezes se lembrou da parvónia, do Aterro, da Avenida dos Aliados, destes quatro palmos que medem Portugal… Pois cá o esperamos – e que venha em bem, como dantes se dizia!
Pede-me o Canhão que declare expressamente que o ditado «longe da vista, longe do coração» não é com ele. A prova aqui está: «perto da vista» o contrato da Noite não andava nem desandava: o cartaz que lhe afixei diante do nariz não parecia eloquente bastante para o demover da sua imobilidade de pedra. Pois bastou a sua ida para que o memorando fosse solenemente retirado! Eis o contrato, pois, redigido na forma do costume, adoptando as percentagens que propôs, e apenas com uma ligeira alteração no número de exemplares. Como quem não quer a coisa, passou-se dos 4000 para os 4500 exemplares, primeiro passo (quem sabe?) para os 5000 (ou mais) da Escolala!... Isto mostra que também é nosso desejo conservá-lo na prateleira dos best-sellers nacionais[2].
A revisão da Noite (veremos se «rigorosa e meticulosa»!) não foi só de 2.as provas: foi também de 3.as, pois o Alexandre Vieira entrou em digressão turística pelo País e eu tive de substituí-lo completamente. Conclua daqui que é inteiramente minha a responsabilidade das tolices que, por desgraça, possam ter passado. Quando a minha Avó acabava de amassar o pão, dizia sempre, depois de traçar uma cruz na massa: «Deus te ponha a virtude, que eu fiz o que pude.» Assim estou eu também.
Quanto às notícias que nos dá da Escola, nada nelas me surpreende. Revisões, provas para trás e para diante – não era realmente possível fazê-la sair em Dezembro. E talvez seja melhor assim: 1959 foi o ano-Miguéis[3]: façamos com que 1960 o seja também. Por outro lado, pessoalmente, prefiro que a Escola apareça com o Autor presente.
Como poderá ver, os cheques que enviamos, datados de 9 e 10 do corrente, mostram que foi aceita a sua sugestão de incluir-se já neste pagamento a primeira prestação da Noite. Brevemente o informaremos das vendas ultimamente registadas de todos os seus livros.
Uma notícia que certamente lhe agradará: um editor americano, cujo endereço segue à parte, pediu-nos os seus livros e indicação de direitos. Aqueles já foram, mas de direitos não falámos, até porque não sabemos ainda se lhe interessará ser editado pelos sujeitos. De qualquer modo, demos um direito de opção de dois meses. Veremos o que isto dá. Se quiser dar-se a esse trabalho, poderá informar-se de quem são os editores: no fim de contas, pode não lhe convir, a si, a edição.
Por agora, é o que há. Os nossos cumprimentos a sua esposa e a sua filha. O Canhão e o Correia pedem-me que transmita por esta via o abraço que lhe mandam. Quanto a mim, usando do privilégio que me dá a função de escrivão-mor do reino da Cor, transformo em duplo o meu abraço. Aceite-os com a estima e a admiração sincera do

José Saramago

P.S. Hesitei se deveria indicar no frontispício da Noite tratar-se de «edição definitiva». Ainda pensei em escrever-lhe para o consultar. Mas, por fim, decidi-me pela negativa: efectivamente, não pode ser definitiva uma edição feita, afinal, longe das vistas do Autor. Além disso, fui encontrar riscadas na sua «Nota ao Leitor», mas ainda legíveis, as palavras em questão. Isso me acabou de decidir. Edição definitiva será, portanto, a que o meu Amigo quiser – e só essa.

Desculpe o rasgão!
Afinal, não vai à parte:
THE NOONDAY PRESS
80, East 11 th Street
New York 3

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[1] Referência a uma personagem de um conto de Miguéis.
[2] Na margem da carta, Miguéis fez as seguintes contas: 4500 x 30 = 135 000$00; 1S%: 10 12S; 20%: 13 500; - total: 23 625$00.
[3] Referência ao Prémio Camilo Castelo Branco com que foi distinguido, e de grande importância na época.

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