Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora — quase sem reparar — cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, davam-lhe o ar de uma criatura que não pertencia a este mundo.
Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte duma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada — o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo — a do silêncio — a do sonho.
Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse à grande nódoa de humidade da parede.
Sei que chorou, mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios — a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?
Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas mais belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, no silêncio, nas coisas suspensas na luz — nos botões quase a abrir.
Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.
O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas...
É que há, entre as figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.
Mas há, entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça. — Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!
Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!
Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço.
Raul Brandão (1867-1930)
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