terça-feira, 29 de março de 2011

Os Cordoeiros: Segunda-feira, Março 29 [2004]

ULTIMATUM À OPRESSÃO

A minha geração recebeu na faculdade de direito, ou outra, a grande lição de que a liberdade se conquista, que os direitos não são fornecidos gratuitamente, que nos advém com sangue, suor e lágrimas. Não nas aulas de Marcelo Caetano, Paulo Cunha ou Cavaleiro Ferreira, que estes eram células visíveis e palpáveis da repressão e opressão que assolavam o país. Antes, lá no fundo da escola, na associação académica, onde dávamos os primeiros passos na mira de uma consciência política e social que haveria de elevar-nos ao estatuto de cidadãos e não de servos com que nos tratavam. Lembro-me, e lembro-me muito bem, de que como éramos assaltados na associação académica pelos gorilas da pide e tropas do capitão Maltez que, invadindo as instalações, quando lhes dava na real gana, distribuíam bastonadas que nos conduziam ao Santa Maria ou ao buraco da António Maria Cardoso.
Era uma opressão totalitária, física, generalizada, que não poupava quem quer que fosse que botasse uma simples palavra de desacordo, um simples pensamento próximo da liberdade ou do exercício de um direito.
As coisas mudaram nessa madrugada de 25 de Abril. O país explodiu de alegria e liberdade. Instalou-se, aos poucos, como em tudo que é grande, a democracia.
Esta, pelo simples facto de o ser, não faz desaparecer, num ápice, por mais órgãos constitucionais que tenha, e por mais que o Estado se organize democraticamente, todas as formas de opressão e repressão. As coisas aqui surgem de um modo mais insidioso. Mais sofisticado, sem pides e sem bastões. Reflecte-se e apalpa-se no modo como os mais diversos poderes democráticos se relacionam com o cidadão. Este, também na democracia, necessita lutar, dizer não, ser capaz de afrontar o poder.
A "opressão democrática", passe a antinomia, veste-se de roupagens hipócritas, de modos astutos de tramar e enganar o cidadão.
Quando o governo anuncia a sua impotência para impedir despedimentos e lava daí as mãos como Pilatos, com a desculpa rasgada de que assim é o mercado, não está ele a esquecer, ou a fazer que esquece, as suas obrigações constitucionais? E, por aí, a reprimir o cidadão dorido pela angústia do despedimento, servindo de instrumento à ganância e desumanidade do capital e seu tradicional comportamento antimoniano?
Quando, e por exemplo:
1. Um qualquer presidente de junta, abusando dos seus poderes, atrasa o deferimento de um requerimento de um seu vizinho só porque este é seu adversário político, não está a reprimi-lo, a usar de opressão?
2. Uma qualquer câmara municipal arreda da distribuição da casa social uma família em favor de outra menos necessitada só porque se trata de um correligionário político, não está a reprimir e oprimir a primeira?
3. Um governo civil distribui um subsídio a um clube de futebol das suas simpatias, assim o desviando do seu destino legal que seria, por hipótese, uma obra social, não está a actuar em termos repressivos e opressores?
4. A Direcção-Geral dos Impostos devolve o IRS pago a mais, muito para além dos prazos legais, não está a oprimir e reprimir o cidadão que pagou demais?
5. Um ministério concede a feitura de uma obra a uma empresa amiga do governante em causa, não está a oprimir e reprimir aqueles que, pelos meios legais, concorreram?
6. Um tribunal resolve um caso judicial para além dos prazos razoáveis de que fala a Constituição, não está a reprimir e oprimir os interessados?
7. Um órgão constitucional, em dado concurso curricular, se permite estabelecer critérios de apreciação dos candidatos que não têm nada a ver com a Constituição e a Lei e ainda se permite não esclarecer o que quer com os critérios que não definiu ("bom senso", "aprumo moral", "imagem na sociedade") não está a oprimir, reprimir e intimidar os candidatos, assumindo uma postura inaceitável num estado de direito e num órgão constitucional?
A opressão e repressão assumem, como se pode ver pelos pequenos exemplos, coloridos muito diferenciados na democracia. Mas não deixam de ser opressão e repressão. Incumbe-nos, como cidadãos, não aceitar, protestar, ou, como diria NATÁLIA CORREIA, erguer sempre uma bandeira que assuma a forma de "… Um ultimatum permanente a todas as formas de opressão mesmo aquelas que se tingem das cores mais vivas da liberdade..."
Vem aí o 25 de Abril. Com ele, é preciso erguer essa bandeira contra as opressões mesmo as mais discretas e sinuosas.

Alberto Pinto Nogueira
# posto por Rato da Costa @ 29.3.04

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