domingo, 27 de março de 2011

Os Cordoeiros: Sábado, Março 27 [2004]

Dia Mundial do Teatro

Raul Brandão“Arranquemos a máscara, camaradas: actores, escritores, tu que finges sentimentos, que todas as noites vestes emoções e caracteres, que te ris quando estás triste – eu que me meto dentro da alma dum Assassino ou dum Santo, que, para escrever, tenho de sentir na mesma hora ódios que não possuo ou simpatias que me enraivam – nem tu nem eu podemos ter uma grande bondade, nem um grande carácter. Cómicos! cómicos! Fazes hoje de príncipe amanhã de bandido, a tua face (tem) de se rir, quando a rubrica lho marca, corta-a um rictos amargo. Vives entre árvores de papelão, finges, afivelas em cada dia as emoções de tantas criaturas diversas – que por certo esqueceste a tua. Passa-se na tua figura o que se passa na minha alma. O meu cenário está em brasa: construí-o eu também com pedaços de sonho: rio-me, choro enxurradas de lágrimas, e, por ficções, me enervo, passo aflitivas horas, em que os nervos me estalam, para lhes dar vida. Não, tu, actor, não podes ter um carácter inteiriço, feito de uma só peça, forjado numa só barra. Nem eu. Sobre cada dor, sobre cada desgraça, que te aconteça na vida, hás-de lembrar-te – Hamlet cena tal, acto tal – a maneira de chorar, de arrastar o manto negro, de calcar o chão com tristeza. Se amanhã o coração me estalar – eu sei-o afinal – hei-de dizer palavras que não sinto, pôr a máscara número tantos, contar frases ensinadas e falsas...”

Raul Brandão
Da crónica Cómicos, publicado em 15 de Dezembro de 1895, no Correio da Manhã
# posto por til @ 27.3.04

Germano Almeida

Nasceu em 1945, na Ilha da Boavista, Cabo Verde. Licenciou-se em Direito na Faculdade da Universidade Clássica de Lisboa. Exerce, actualmente, a advocacia na cidade do Mindelo.
É um dos grandes escritores contemporâneos em língua portuguesa. Publicou O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva AraújoO Meu PoetaO Dia das Calças RoladasA Ilha FantásticaOs Dois IrmãosEstórias de dentro de CasaDona Pura e os Camaradas de AbrilAs Memórias de um Espírito e, recentemente, O Mar na Lajinha.
Destaca-se aqui, nos Cordoeiros, o romance Os Dois Irmãos. Com ironia e profundo conhecimento dos mecanismos subjectivos e objectivos da justiça, descreve-nos a história de um julgamento e a história do que está a ser julgado. De leitura obrigatória para advogados e magistrados.
# posto por til @ 27.3.04

Sem comentários:

Enviar um comentário