26 – Março (domingo de Páscoa). É a ressurreição da Natureza e Cristo aproveitar para ressuscitar também. Queria eu também aproveitar, mas só os mortos com uma semente de vida o conseguem. A Natureza tem o que ficou nela a fermentar e Cristo tinha uma profecia a cumprir, que para isso é que as profecias existem. Se alguma profecia houvesse quanto a mim, seria para o contrário. Porque ainda cá estou. Em todo o caso, sinto atravessar-me o frémito da terra, embora mal saiba localizá-lo. Devo talvez procurá-lo na memória, que é onde me ficam todos os presentes que foram. Vou de lugar em lugar, de pessoas e factos em factos e pessoas e acabo por ter de ir ter de ir dar à aldeia. Ainda haverá aldeia para isso? Ainda há flores e águas livres pela serra? Ainda há padre a levar o Cristo às casas e a trazer de lá o folar? Ainda se joga à «pela» na estrada? Os pássaros ainda estendem de árvore a árvore a festa da luz? Ainda há namoros nas fontes? Ainda há bêbedos às portas das tabernas, esses sacrários da alegria proletária? Ainda há um ar novo para respirar? Ainda há crianças? Ainda há a cor azul? Páscoa de Ressurreição. De Cristo e da Terra. E de mil mim, se puder ser.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 57 e s.
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