quarta-feira, 23 de março de 2011

PROLEGÓMENO EM TRÊS TEMPOS (Bento da Cruz)

Primeiro:
Está decidido. Vou a Lisboa. A dúvida é se hei-de ir ao Presidente da República, se ao Primeiro-ministro.
Para os senhores, o motivo pode parecer ridículo. Para mim é de peso. De capital importância. De sobrevivência, para dizer tudo.
Para quem não saiba, esclareço que estou a passar os fins-de-semana em Peireses. Onde as noites são escuras e fundas. Começam pelas cinco da tarde.
Por outro lado, as ruas não são propriamente daquelas onde se possa ensaiar um pé de valsa sem correr o risco de cair num barranco.
Aldemais, há os ladrões, os lobos, os javalis, as bruxas, os lobisomens, as almas do outro mundo. O diabo. Daí que um homem tenha necessidade de ver, pelo menos, o chão que pisa. Parece que a Electricidade de Portugal me reconheceu esse direito ao colocar-me um poste à porta. À priori, esse monstrengo, que tem, ao cimo, um apêndice com uma lâmpada ao dependuro, devia dar luz. Mas não dá. Na minha ingenuidade, julguei que bastaria mandar recado à delegação da EDP em Montalegre, para a lâmpada ser substituída. Mas enganei-me. Mandei recado, empenhei os amigos, recorri aos bons ofícios da Câmara Municipal. Nada. O poste continua às escuras. Há meses. No Verão, ainda fui aguentando. Mas agora, com o Inverno e um regato de água à porta, não aguento mais.
Vou a Lisboa. Alguém tem de me ouvir. Que pago três contas mensais à EDP. Uma do consultório, outra da residência, a terceira da casa de Peireses. Qualquer delas choruda. Acho que, na minha qualidade de contribuinte e pagante, tenho direito à parte que me cabe na iluminação pública. Mas, se não tenho, e primeiro têm de me explicar porquê, nesse caso, retirem o poste da minha testada. Se me não dá luz, ao menos que me não faça sombra. E é inestético. O horror às antenas, postes e posteletes, levou-me a requerer que a EDP me fizesse uma ligação subterrânea. Sabem por quanto me ficou uma escassa meia dúzia de metros de fio subterrâneo? Cento e oitenta contos de réis! Fiquei na dependura. Mas, suponho eu, ainda me restam os cobres suficientes para uma lâmpada. Se é esse o busílis, digam quanto custa e eu pago. Mas ponham-me lá a porcaria da lâmpada.

Segundo:
Ontem fui apanhado pela noite na estrada Braga-Montalegre. Aquilo, entre o Penedo e a Venda Nova, está uma lástima. Uma dor de alma. Uma ratoeira. Nalguns troços, de cem em cem metros, tem uma vala. Deduzo que para passagens de águas particulares. Mas como não vejo lá ninguém a trabalhar, pergunto: para que raio permitiram a abertura das valas com tanta antecedência? Não seria mais lógico, e menos danoso para os carros, fazerem tudo em simultâneo?
Às tantas, apanhei duas valas seguidas e o automóvel, que tem quase tantos anos como eu, foi-se abaixo dos joanetes. Julguei que era o fim.
«Então, parceiro?» — perguntei eu, aflito. «Vamos lá» — respondeu ele cheio de coragem. E veio. E eu a pensar. E dizer que há para aí uns safados, uns mal-agradecidos, a quem brindam com auto-estradas de luxo e se recusam a pagar portagem… E outros safados que, na Assembleia da República, lhes dão razão…
Aqui deixo um recado ao Governo e ao Ministro das Obras Públicas: façam-nos uma auto-estrada de Braga a Montalegre, que nós não nos importamos de pagar portagem.

Terceiro:
Uma das coisas que gosto de fazer na aldeia é dar grandes passeios. Um dia destes, ia a sair do povoado na companhia do meu primo Carlos, quando ele me chamou a atenção:
— Olha para ali.
E apontava uma casa à berma da estrada.
— Feia como todos os diabos — disse eu.
— Não é isso. O letreiro.
— Ah!
Não havia dúvida. Lá estava, com todas as letras pintadas a vermelho numa tabuleta:

A VENDRE

Estará o dono de tal mamarracho à espera que um francês passe e lho compre? Ou julgar-se-á ele dans les environs de Paris? Já agora va tout em franciú.
De modo que os nossos emigrantes, depois de nos haverem estropiado a arquitectura tradicional, querem-nos estropiar também a língua. Voilà.
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso, p. 31 e ss.

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