quarta-feira, 16 de março de 2011

Vergílio Ferreira (16 de Março de 1989)

16 - Março (quinta). Comprei ontem um livro maravilhoso. É uma espécie de fotobiografia do Eça, mas com mais texto do que é costume neste tipo de livros agora muito em voga. Foi organizado pela brasileira Beatriz Berrini, que é uma excelente queirosiana e pessoa da mesma excelência. Tinha a esperança de que mo oferecesse, mas as esperanças desistiram. De modo que o comprei. Uma fortuna. Dez contos, calcule-se. E agora para aqui estou a folheá-lo da frente para trás e regresso logo a seguir, de trás para a frente. É um extenso documentário com milhentas fotografias da múltipla gente que enquadrara o grande artista, pais, irmãos, amigos, descendentes, e que eu escassamente conhecia. E então deu-se um caso curioso. O que para mim existia era o escritor, as suas obras e decerto mil acidentes biográficos e culturais já conhecidos e lhe prolongavam a obra. Mas o que não existia, ou quase, era o homem, a pessoa integrada na sua família, prolongada nela, mas sobretudo, e isso é que me foi extraordinário, esbatida nela. E eis que desse modo o escritor e artista começa dissolver-se numa realidade imediata e absorvente, que são os seus parentes, a realidade deles que o absorvem, o assimilam, lhe esbatem o relevo exclusivo do mítico criador de uma obra de arte que dominava tudo, se afirmava com uma soberania em que tudo o mais se apagava ou dissolvia. O que resulta do livro é a evidência de que ele tinha irmãos, uma irmã linda chamada Henriqueta (como a irmã do Pessoa) — que morreu jovem deixando um filho com menos de dois anos que tivera de um Krus, os dois irmãos mortos com um intervalo de um ano, a irmã solteira — Miló que criou o miúdo da Henriqueta, chamado Carlos e, para a família, Batuchinho, uma neta, filha do filho mais velho, casada com um neto do conde de Ficalho, e assim por diante. O escritor Eça de Queirós mergulha assim num mar de gente e para lhe lembrarmos a obra temos de imaginá-lo a esbracejar e a erguer ao alto essa obra como Camões em naufrágio, salvando a nado Os Lusíadas
*
Aviso aos escribas meus irmãos, chegados à maioridade: Se um escriba noviço te pedir um prefácio que lhe lance o seu primeiro livro, ou um artigo que o apresente ao público ou o que for que o promova, se acaso esperas daí uma palavra de reconhecimento (em público), ou uma palavra de apreço (em público), ou uma dedicatória num livro, ou uma simples referência amável numa entrevista ou seja o que for de simpatia (sempre em público), não lhe escrevas o prefácio nem lhe escrevas o artigo nem te mexas donde estás para o que lhe dê um empurrão para a glória. E se um outro escriba se prepara para o arranque e te frequenta a amizade e a adulação e o mais, com o fim de talvez o recompensares com um prefácio de apresentação, etc., não te movas nem te comovas, porque o que ele quer de ti é um jeito suficientemente agachado para lhe servires de pedestal. Porque para quem quer alçar-se à glória e seus proveitos, a maior humilhação que se lhe pode infligir é o favor. Porque o favor só se faz a quem é humilde e se não sente vocacionado para subir além da humildade. E para os outros o favor é humilhação mas sem possibilidade de a ele se poder reagir por o não parecer. Porque só a humilhação traz o odioso de o ser, é que pode pagar-se em dinheiro contado, ou seja um outro ódio.
*
Sou um cigano da escrita — que bom. Não tenho poiso certo. Sou livre como nunca o fui. Porque escrevo romance ou reflexão ou diário, sem qualquer objectivo para lá do escrever. Porque sempre escrevi com o objectivo de publicar, de realizar de construir. Não tenho objectivo nenhum. A Bertrand não me reedita os livros, a não ser que haja deles grande solicitação. Não me ralo. Tinha mesmo piada que todos chegassem à estaca zero. Ontem vi na Bertrand da Avenida de Roma muitos livros mais ou menos ao quilo. Lá estavam vários Vagão J. Que bom se os despachassem. A minha vida cumpriu-se, estou bem aqui comigo. Escrevo agora com o vadiar beduíno, sem oásis em mira. Hoje escrevi mais umas linhas do Capítulo X do romance, mais umas «refexões», mais este vário garatujar. Não sei para onde vou como o Régio, que todavia lá ia sabendo que não ia por aqui. Eu não sei. Sei só que respirar é bom. Sei só que preciso de uma cabeça transparente para as ideias terem livre circulação e não andarem aos tombos. E sei que hoje tem sido um dia farto, com uma razoável cerebração arejada, e os ouvidos menos griteiros, e os nervos menos amotinados e a angústia mais refluída. Seria bom que toda esta tralha de ser não mudasse de ideias. Há tantos meses que me endoidece. E me explica em aula prática como é que se chega ao suicídio… Sim, sim. Sei agora muito bem como é.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 50 e ss.

Sem comentários:

Enviar um comentário