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Lisboa, 26 de Setembro de 1959
Querido Amigo,
A barca da Noite vai ser lançada ao mar por estes dias. A impressão está no fim, a capa pronta, a «nossa» capa com a «sua» anamita… Cada folha do livro que me passa pelas mãos é um suor frio: estou sempre à espera duma daquelas gralhas sorrateiras, gralhas de pezinhos de lã, que só picam quando já estamos irremediavelmente manietados. Uma apanhei eu à última hora. Veja só: nas 3.as provas repeti uma emenda que já tinha feito nas anteriores, sem que o compositor se impressionasse com a insistência. Entregues as provas, dizem-me de lá: nós fazemos as emendas que ainda apareceram, fique o senhor descansado que não há-de haver novidade, etc, etc. Não há-de haver!... Pois não, que não havia!... Eu tinha concordado, mas às tantas dá-me o coração um baque: puxo do telefone e digo: não senhor, quero provas de todas as páginas com emendas! Que talvez não valesse a pena, que a máquina estava parada, à espera. Esse argumento da máquina parada, que sempre me comove, deixou-me insensível. Insisti. Vêm as provas, contrariadas. E lá estava a Gralha! Imagine que a pobre Julieta da Mancha, ao cair do chão com o faniquito, não tinha o telegrama amarrotado nos dedos, não senhor! Eram os cabelos da pobre que se crispavam no malfadado papel! O compositor, ao fazer a emenda terceiramente apontada, não esteve com mais aquelas: trocou dedos por cabelos – e aí estava eu desacreditado como revisor, e sem culpa!
Este fait-divers, que só lhe conto para o fazer intervir um pouco na «fazedura» do seu livro (parece que condenado a ser feito sempre fora das vistas do autor), talvez devesse ir no fim, porque, principalmente, o motivo desta carta é o de anunciar-lhe que seguem, por avião, umas tantas primeiras folhas para assinatura. Em breve irão os volumes que pediu para as ofertas pessoais, esses por via marítima como ficou combinado.
Espero que tenha recebido a minha carta anterior: lá ia o contrato, e também dois cheques que somavam três contos.
Por cá, tudo bem. O Canhão foi gastar os réditos editoriais em orgias bordelesas e parisienses. O Correia prepara-se para o imitar. Só eu, pobre proletário das letras, a sonhar com obras impossíveis, aqui continuo agrilhoado, invejoso e dispéptico, com ferocidades de niilista e gostos de burguês – que é assim que entendo dever ser traduzido o ange et bête do Pascal.
O Nataniel promete cá vir na primeira quinzena de Outubro. Pena que o meu querido Amigo cá não esteja: fazia-se um bate-papo consolador.
E termino de estalo, corno diria o Camilo. Cumprimentos para sua Esposa e sua Filha. Um abraço do muito amigo e muito admirador
Saramago
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