sábado, 19 de março de 2011

Vergílio Ferreira (19 de Março de 1989)

19 - Março (domingo). A minha aldeia não é abundante em celebridades. Já o tenho dito e repetido, porque essa falta magoa-me. Mas aqui há anos soube pelo meu contemporâneo coimbrão Abílio Perfeito, que tinha lá rebentado um poeta. Chamava-se Luís Borges de Carvalho e vivera nos séculos XVII-XVIII. Pedi então ao poeta seu confrade João Rui de Sousa, que funciona na Biblioteca Nacional, me soubesse lá coisas do meu patrício. E ele soube. Não tudo. Mas que chega para aqui dar notícias suas. Assim na sua Biblioteca Lusitana (volume III), Diogo Barbosa Machado diz que o meu conterrâneo era «cavaleiro professo da Ordem de Cristo» e que «nascera na Vila de Melo do bispado de Coimbra a 3 de Agosto de 1689, onde teve por progenitores David Borges de Azevedo, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, e D. Maria de Carvalho, igualmente nobres e opulentos». Cultivou a «Jurisprudência Cesárea em a Universidade de Coimbra em que se graduou a 13 de Julho de 1712 com geral aplauso dos Catedráticos». «Entre a severidade do estudo jurídico sempre conservou inocente comércio com as Musas, poetizando com suavidade, cadência e elegância». E eis aqui um exemplo desse comércio com as musas, aliás copioso. Pela morte da infanta D. Francisca, acontecida a 15 de Julho de 1736, colaborou nos «Suspiros saudosos» e nos «Acentos saudosos da musa portuguesa», em «Epicédios», em «Sentimentos métricos», fez sonetos, novenas, romances a outros grandes, indiferentemente mortos ou vivos. Sai soneto à D. Francisca tipicamente barroco e fala o Tejo:

Suspende, Orfeu discreto, Orfeu sentido
As tristes vozes do suave canto,
Eu não posso ouvir já estrago tanto,
O horroroso ainda é mais, que o entendido.

Aqui me tens suspenso e enternecido
Umas vezes na dor, e outras no espanto,
Já não sou Tejo, não, porque sou pranto
De Elísea bela no seu bem perdido.

Se encareces da morte a crueldade,
Dize só, que roubou o régio alento
À flor, à luz, à Infanta a Majestade:

Pois animas de sorte o sentimento,
Que parece acabaram de saudade
A Terra, o Mar, o Fogo, o Firmamento.

conta-corrente - nova série I (1989), p. 50 e ss.

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