quinta-feira, 10 de março de 2011

Vergílio Ferreira (10 de Março de 1989)

10 - Março (sexta). Minha cabeça aturdida de um rumor profundo, minha zoada de febre nos ouvidos, minha impossibilidade de subir à altura que o destino me deu, meu sofrimento que não sei explicar, minha perda de mim.
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Sandra. Vens de novo da rua Larga para a Faculdade, mas deve agora ser Verão. Estou sentado no murete de uma das divisórias do jardim em frente, tu vens no teu vestido vaporoso, sobes os patamares até ao portão de entrada. Mas não te deixo agora subir. Imóvel, um pé no degrau, vejo-te o modelado brando da perna sob o vestido, o pé subtil pousado adiante, o rostinho breve, fechado na sua sisudez que é demais para a brevidade do teu ser. Decerto não existes, não exististe nunca. Mas só o que nunca existiu é que vale a pena existir. Sou eu que te faço existir na obsessão de uma incerta eternidade que é o que está certo para o excesso da minha. Tudo é pretexto para isto que o não é. E então não pode ser ilusão. É bom que a realidade nunca tenha existido. Porque só essa poderia ser ilusória. Toda a beleza tem um além de si. E esse além é que é. Não te movas. Até que os meus olhos se esgotem no olhar. E a cegueira seja a sua luz.
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O Eduardo Prado Coelho manda-me de França uma critica da Art press 134 e diz-me a propósito «vê que os franceses gostam de si». Porque em tempos eu dissera-lhe que não. E com efeito, para o fim da crítica, diz-se a meu respeito «ce très grand ècrivain portugais». Vou, pois, deitar ao caixote o osso que estava roendo. E vou-me alimentar como gente.
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E à noite vamos a casa do Gilo festejar os 19 anos da Rita. Está uma moça bonita. Alta e magrinha como o pai. E para o ano faz 20. E vinte anos são já a altura de um padrão.

conta-corrente - nova série - 

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