sábado, 12 de março de 2011

Vergílio Ferreira (12 de Março de 1989)

12 - Março (domingo). Contaram-me uma anedota, deixem-me contá-la. Quando foi da jornada em Paris «Lês Belles Etrangères», juntaram-se num café a Agustina, o Saramago e o Vergílio Ferreira. E a certa altura a Agustina disse: Sabem uma coisa? Esta noite sonhei que um anjo veio ter comigo e disse-me: tu és a maior escritora portuguesa. Saramago ouviu surpreso e replicou: É curioso. Pois eu também sonhei que um anjo veio ter comigo e me disse: Tu és o maior escritor português. V. Ferreira, revolvendo o seu café, comentou: Tem graça. Não me lembro de ter enviado anjo nenhum. 
Ora bem, a anedota traz-me um sentido positivo e negativo. Mas as pessoas que me referiram a anedota têm sido sempre amáveis na opção do melhor. Adopto-o para meu contentamento ou sossego. 
*
Escrevo sem esperança no futuro, sem conceber que isto tenha significação. Escrevo para me cumprir neste destino maníaco de desenhar caracteres numa constância imparável até à morte. Que é que pode conceber-se ideia viável nesta obsessão que se me tramou? O que escrevo, o que penso não será amanhã senão incompreensível devaneio. E que fosse num instante para atenção compreensiva, como é que pode equilibrar-se aí a marca enorme do seu desperdício? Mas nada a fazer. É um destino antigo como o homem que um dia a escrita reconheceu. Ninguém paga em interesse o que uma multidão enorme consumiu na escrita que ninguém lê. Mas outros vieram, outros virão depois desses e consumirão igualmente a vida na inutilidade da sua obsessão. Como outros fizeram filhos para o destino que foi de outros em tragédia e silêncio. 
Escrevo sem esperança, escrevo sempre. Porque não é a esperança que me faz viver, mas apenas a necessidade de estar vivo. 
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Escrevo três livros com este que o não chega a ser. E hoje escrevi um pouco neles todos, mesmo no romance que progride no Capítulo X e está agora na altura em que o filho do narrador, que é médico e padre, o visita na véspera de lhe amputarem a perna, sem eu saber ainda se é o médico ou o padre que tem ali que fazer. E tudo isto rompendo uma tremenda dor de cabeça que se me convulsiona de aturdimento, na ameaça sempre de ser terrassé. E assim feliz para fora da dor de cabeça, que é onde pode ser o sítio do que é talvez beatitude ou contentamento de mim ou pacificação interior.

conta-corrente - nova série - I (p. 45 e s.)

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