sexta-feira, 11 de março de 2011

Vergílio Ferreira (11 de Março de 1989)

11 - Março (sábado). No último número da «Colóquio» saído há um mês e tal, vinha uma larga resenha do Eugênio Lisboa sobre Conta-Corrente 5. Muito simpática para o conjunto do volume (que tem quase 600 páginas), é extremamente agressiva por causa de uma referência que aí faço ao Régio. Pedi ao Luís Amaro que me consentisse uma resposta na mesma revista. Ele respondeu-me que a «Colóquio» era uma revista comportada e que não tolerava portanto desordens nos seus interiores. Eugênio Lisboa, que é velho amigo, atropelou o princípio deontológico de me enviar o texto antes de o publicar. Porque em tal caso, se o enviasse, eu dir-lhe-ia logo de minha justiça, desarmando-lhe a sua. Mas como preferiu saltar por esse gesto de civilidade, deixo aqui em sumário o que lhe não pude dizer, a) Continuo a considerar Régio um grande escritor por razões óbvias e dispensadas de explanação; b) Mas ele não soube administrar a sua grandeza. Deste modo não há contradição entre o que disse ontem e o que digo hoje, porque mantenho, pois, o que disse e o que digo; c) O dizer eu que Régio foi um provinciano não tem que ver por força com o ter vivido na província e eu próprio desejei, ao vir para Lisboa, trazer a província comigo e instalar-me nela. Mas sem dúvida a província dá uma perspectivação retardada para um tratamento e mesmo escalonamento de valores. De todo o modo, viver na província não é por força ser provinciano. Das pessoas ilustres que conheci, a mais provinciana viveu a maior parte da sua vida em Lisboa. Chamava-se António de Oliveira Salazar. Em todo o caso não terá sido uma eventual coincidência o facto de só duas personalidades notáveis do meu conhecimento terem usado botas: Salazar e Régio; d) Quando digo que Régio não era «inteligente», não significa que era curto do miolo. Eu faço uma distinção entre ser «inteligente» e ser «razoador», podendo dar-se o caso de este ser mais dotado do que aquele. (Ver Conta-Corrente 3, páginas 51/2); e) É necessário não desligar um texto do seu contexto. Não ia dizer mal de Régio ao Serpa. Acaso o E. Lisboa supõe que quando na dedicatória lhe falam em «admiração», a pessoa que lho diz é realmente um admirador? que quando lhe dizem «muito prazer em o ver» ficam mesmo derretidas com a sua vista?; f) Um dia Horácio disse que quandoque bonus dormitat Homerus. Significa isso que Homero para Horácio escrevia os seus versos sempre dorminhoco? O Sena disse em carta ao Régio esta coisa grave de que cometia «asneiras». Significa isso realmente que lhe chamou «asno»? E porque é que E. Lisboa não se mostrou jamais agastado com Sena? Por ter génio que o desculpa como me não desculpa a mim o génio que não tenho? g) A geração do Orpheu foi sobretudo criadora. A da Presença foi sobretudo ou simultaneamente pedagoga. Isto que é elementar, E. Lisboa nega-o. Mas quem foi o Simões, o Régio doutrinador, ou o Casais doutrinador, com arruaça no Orpheu?; h) Muito se fala nas minhas agressões. Quem fala dos que mas infligiram? Por exemplo as do Bau-Bau que há 30 anos me não larga as canelas? E as dos que depois se me converteram? Curiosamente foi o Bau-Bau que ainda há dias se referia ao meu «ódio» (!), numa caca que foi fazer na revista Ler e deixou lá um pivete pestilento; i) Arte e coacção. Inefável descoberta para E. Lisboa. Claro que toda a arte tem os seus limites de coacção. Por exemplo um quadro, limitado pela moldura... Como é limitado por não ser escultura ou música ou cinema... Ou um autor que não pode escrever 3000 livros... Ou um concerto para a quarta corda, que não utiliza as outras três... Estaline devia gostar de ouvir o amigo Eugênio. Isto é «chuchar»... Pois decerto. Mas que outra maneira de lhe responder? j) Por fim. Eu vi a estreia de um filme do Lauro António baseado no Vestido de Fogo do Régio e que se mostrava fiel quanto possível ao texto. De vez em quando era uma gargalhada geral — em tiradas dramática; Para se medir bem o pouco senso ou maturidade ou qualidade adulta do Régio, basta ler largos trechos da Confissão de um Homem Religioso ou outros textos em que fala de si e do seu talento como no posfácio de Poemas de Deus e do Diabo. E é ouvir a generalidade das pessoas que tem repulsa pelos seus versos. Eu persisto em admirar Régio porque trouxe para a literatura uma soma de temas e problemas de alto nível humano e literário e escreveu um grande romance — dos maiores deste século — que se chama Jogo da Cabra-Cega. E ponhamos aqui uma cruz. (O texto de Conta-Corrente 5 a que se refere Lisboa é de 22.7.85. A propósito: onde está «humanista» deve ler-se «humorista».)

conta-corrente - nova série - I (p. 43 e s.) 

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