quinta-feira, 3 de março de 2011

[1989] – 3 - Março (sexta).

Não há dúvida, levei tempo a sabê-lo, mas consegui. Sou um escritor menor — que fazer? Agora em França tirei a coisa a limpo. Foi um chuveiro de escritores portugueses traduzidos e todos tiveram um doce a premiá-los: «grand écrivain», «grand talent», «roman superbe», «chef-d’aeuvre» e assim. De mim houve até um imbecil que disse ser o tema de Para Sempre (velhice, etc.) arquibatido, mas que eu lá tirara um acento novo através do fado português. O cretino… Nem o tema do meu livro é esse. Mas imagine-se que em face de uma «maternidade» de um pintor se dizia: outra vez a maternidade. Ou das Virgens de outrora. Ou de um nu, etc. Mas pronto. Um ou outro lá me atirou um osso. Vou roê-lo para o meu canto. E vou ver se nunca mais de lá saio, mesmo sem osso nenhum.
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Em começos de Janeiro o Rogério de Freitas pediu-me um texto para lhe acompanhar o catálogo de uma exposição. Fui uma tarde de domingo a casa dele e vi os quadros que ele expusera na sala. Olhei-os com a intensidade que pude e vim para casa redigir o texto. Com grande surpresa minha, ele não gostou. E arranjou uma desculpa para o não publicar, dispensando o catálogo. Porque não gostou? Soube-o mais tarde por «portas travessas». É que era um texto melancólico, depressivo. O curioso é que ele disse a alguém que só lhe apetecia pintar a cores escuras. Mas foi o meu texto que lhe descobriu porquê. Aqui o tento reconstituir pelo rascunho que me ficou:

Iniciação à Noite

É a hora grave do entardecer, Rogério o soube enfim. Ou não ele — a sua arte. E ele deve estar agora a aprendê-lo. Porque é a arte que nos ensina, antes de o incognoscível lho ensinar a ela. Cessaram as cores da alegria, as que resplandecem espectaculares numa praia de verão, as cores intactas à sombra, quando o sol desce a pique. Mas as que as renderam não são cores da tristeza — são, quando muito, de uma serena aceitação. Assim elas amortecem na ameaça da noite que se adivinha e estendem-se na horizontal, que é a linha do repouso, o traço de uma soma. E se por vezes a linha desce na vertical, é à memória de uma taça que transborda em silêncio, num jardim deserto ao fim da tarde. São na sombra as cores do céu e da terra porque elas são a verdade de um homem, desde os olhos até aos pés. Mas são cores silenciosas, não daquelas que gritam e chamamos por isso «gritantes». Espaço e silêncio são assim as dominantes destes quadros de Rogério — o espaço que se abre para a infinitude do homem e o silêncio que sobe até esse homem da terra. São quadros para olharmos infinitamente e não para simplesmente nos alegrarmos — passarmos — e esquecermos. São quadros que se situam, quanto à sua realização, entre o rudimentar e o afectado precioso. Assim eles nos prendem numa atenção quente e em que nos reconhecemos na nossa difícil harmonia. Mas são sobretudo a imagem de que nos olham em silêncio porque as palavras se esgotaram ou são já importunas. Assim a pintura do Rogério não é trágica nem lírica, não sofre nem se alegra, conhece apenas a gravidade da terra e estende-se até à infinitude que é dela e é nossa e onde uma voz que se erguesse não teria um eco para a repetir. Hora do fim que se anuncia e se aceita na coragem de se ser humilde, as cores que o dizem falam de um céu que anoitece — de um chão humano que se investe da sua melancolia. Pintura elegíaca? Pintura grave onde os gestos cessaram e as palavras que os acendiam. Pintura apenas de ser. Como tudo o que simplesmente é.
3. 12. 88
V. Ferreira

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