5 - Abril (quarta). O romance que escrevo (com vários títulos ainda na corrida, a ser ganha talvez por um que ainda não partiu) pensei-o um pouco numa determinada orientação um tanto demorada aqui a explicar. E lentamente, à medida que o ia escrevendo, veio ao de cima um tema diferente. Mas mesmo assim, ainda não sei bem qual seja. Suponho que esse tema será definitivamente o corpo. Mas sob que aspecto? Que é que significa realmente um corpo para um velho em degradação? Que é aí o espírito? Como se reconhecer um no outro? Que efeito faz um sujeito o ser sujeito num corpo em miséria? É ele ainda esse que na miséria é? Isto e o mais que não sei i-lo-ei descobrindo com a realização do romance. Porque é numa situação concreta que nós sabemos quem somos. Uma grande quantidade das características potenciais irá morrer connosco porque nunca houve oportunidade de se revelarem o que são. E um romance é a construção concreta dessas oportunidades. De momento – e de chofre – não sei o que é ser-se num corpo em decomposição. Mas posso imaginá-lo melhor, se me integrar pela imaginação nesse corpo a decompor-se. Assim estou com imensa curiosidade de o saber. Mas só depois o saberei. Ou saberei apenas o que é de saber – e não o que é de ser. Mas o ser, possivelmente, nunca nos permitiria o saber, porque só nos permitiria o afundarmo-nos nele.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 61
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