2 – Abril (domingo). Ontem fui com o Gilo e Helena a um espectáculo de fados de Coimbra. Era no Maria Matos, aqui perto de casa, fui. Normalmente estes espectáculos são uma decepção. Levamos na memória emotiva muita coisa para colaborar, mas o efeito não corresponde. Não estava muita gente, talvez falta de publicidade. E era um público que se reconhece logo fraterno, Há um ar de família num certo modo de ser que não é daqui, com uma certa cumplicidade clandestina. A gente conhece-se sem se conhecer, num entrecruzado de olhares como de quem se não via há muito tempo, num modo de ser contemporâneo de Coimbra sem o ser. O espectáculo. Mau arranjo da aparelhagem sonora, com estridência das vozes, excessiva sonoridade, má disciplina dos cantores. Cantar baladas de Coimbra é muito difícil. Exige qualidade e um trabalho de voz que lhe dê modulação, suavidade, simpatia. O cantor normalmente larga em destemperos canoros, quer ser ouvido pelas pedras. Tive de tapar às vezes os ouvidos para interpor moderação. Uma das guitarras era excelente. E um dos cantores tolerável. Mas de todo o modo foi bom. Porque o que se ouvia era o que estava atrás do que se ouvia. Assim pude ouvir a memória da rua Larga, do Parque à beira-rio, ver Santa Cruz, o espaço do jardim da Universidade para o Mondego e Santa Clara, a Torre e os Gerais. Ouvi os eléctricos descerem a rua de S. João, passarem o Arco do Bispo. Vi os meus amigos de outrora, idos, mortos, desaparecidos, vi Sandra. E tudo foi belo como se fosse. E tudo foi belo como a ternura …
conta-corrente - nova série I (1989), p. 59 e s.
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