domingo, 8 de maio de 2011

Vergílio Ferreira (8 de Maio de 1989)

8 - Maio (segunda). Quem vem seleccionar-nos o que lembramos do passado? O que é que? Factos sem importância, um gesto ao acaso, uma palavra insignificante dita ou ouvida ficam por vezes a lembrar-nos para a vida inteira. E outros factos com importância, situações decisivas para o nosso futuro submergiram-se no esquecimento. Mas acontece também uma coisa mais rara e intrigante e é que factos ou pessoas ou situações que nunca mais lembrámos, voltam por vezes inesperadamente e ficam e demoram-se em obsessão. Uma situação em que foste humilhado e passou. Ou um elogio em que nunca mais tinhas pensado. Ou uma rapariga amada que desapareceu no turbilhão de dezenas de anos, que possivelmente já não é nada, desaparecida há muitos anos na morte e que de súbito se levanta diante de ti, bela como a imaginas, imóvel na eternidade do seu ser lembrado, identificável na sua voz se pudesses voltar a ouvi-la. Terás ficado a amá-la para sempre? Será uma tua criação do imaginário? Quem ta trouxe de novo? O que é que a trouxe? Mas como ela, a face de um antigo companheiro, a de um professor, o seu modo de estar na aula, o seu modo de andar. E porque os recordas? Porque não recordas outros? Que é que houve neles de típico, de fixável? Lembro por exemplo os meus professores da Guarda. E de cada um há um pormenor que ficou e tudo o mais desapareceu. De um Carlos Marques, que era professor de Geografia, lembro os seus olhos pequeninos e mortais, o estar de pé ou a mover-se de um lado para o outro, mas pouco a voz. De um Duque de Vieira, professor de História e Filosofia, lembro o estar de pé e encostado à secretária, a dar as aulas, um certo jeito de entrelaçar os dedos, a fronte alta. Do Nunes de Figueiredo, professor de Latim, os anéis, o bem-vestir, uma certa satisfação e exibição da sua posição social de professor, o andar langão. Do não sei quê Martins, professor de literatura, fanhoso, aninhado à secretária, o ar mesquinho a enrolar um cigarro. Da Salete, professora de Alemão e Inglês, quase nada. Apenas talvez um ar ainda vistoso de solteira atrasada (casou-se mais tarde creio que comum aluno e foi infeliz). E que lembro dos colegas? No liceu, na Faculdade, na profissão? Quem vem escolher-nos as lembranças? E com que critério? E para quê?
conta-corrente – nova série I (1989)

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