Lisboa, 7 de Junho de 1960
Meu querido Amigo,
As paredes da sua casa, aí, devem tê-las ouvido boas a meu respeito! E com carradas da razão. Que silêncio é este? que se passa nos Estúdios COR? que é feito do Saramago, que perdeu o pio? E vai-se procurar os motivos e que se encontra? Nada, ou antes, mil e uma pequenininhas coisas, todas igualmente significantes, mas que juntas fazem uma rede capaz de amansar Hérculcs – o dos doze trabalhos.
Se realmente vem em meados deste mês (e oxalá venha, que já tarda) esta carta vai encontrá-lo em preparativos de partida. Não importa. Não vou deixar escapar esta oportunidade de vestir a pele de crítico, a mais sovada e dura pele da Criação.
Que é, cá no meu fraco entender, a Escola do Paraíso? Um prodigioso inventário, já o disse. Todos vão procurar «o» romance no seu livro – e não «o» vão encontrar. (Como «o» não encontram na Recherche du Temps Perdu.) E esse será o seu grande «crime». Porque nada mais atrapalha as pessoas de índole classificadora (e sabemos bem quanto os lusos são dessas tais) que não saberem onde meter a ficha a que sempre reduzem as obras de arte. Por mim, confesso que até um terço do livro me senti dérouté: a todo o momento me parecia ter um fio condutor na manhã, e logo, ele se partia, substituído imediatamente por outro que também não levava longe. E a minha franca admiração por si perguntava, desolada: «Aonde quer chegar este homem? isto é partida que se faça ao leitor de boa fé (ou má) que compre o 'romance'?» Até que percebi, ou melhor, até que encontrei a «minha» explicação: a Escola é uma exploração da memória, levada telescopicamente ao infinito, desdobrando-se e repartindo-se em todas direcções, passando e repassando infatigável, até restituir em cor e sabor, em som, facto e olfacto (todos os cinco sentidos) uma época, um estilo de vida, um conjunto social que não se extinguiram de todo, apesar dos cinquenta anos decorridos, de duas guerras, vinte revoluções e trinta-anos-de-cultura.
Quando acertei a minha rota pela sua agulha (ou o que eu suponho ter sido a «sua» agulha), o constrangimento e o embaraço sumiram-se, e eu desci consigo à investigação minuciosa e apaixonada do tempo da «sua» infância. E embora uma adolescência nos separe (eu tenho 37 anos), descobri na minha memória inúmeros ecos da sua. Eu conheci algumas pessoas «assim», houve ruas, jardins e quintais como os seus na minha infância. Em cada página me acontecia um sobressalto de ressurreição, e momentos houve em que o autor do livro (não sorria, por favor!) era eu e ninguém mais... Cheguei ao fim como quem termina uma viagem que não devia acabar, porque as terras da memória estão sempre por descobrir, porque o «inventário» nunca está terminado. E caso curioso: não obstante tratar-se de um livro grande, ficou-me um gosto de frustração, como se me sentisse roubado de uma última palavra que não chegou a ser dita. Mas como dizê-la? Encontrar essa palavra (sinto que me estou a deixar arrastar para uma filosofância pretensiosa) era encontrar a chave que permitisse ao homem confundir passado e presente, amalgamá-los, tomá-los um todo – e eu não sei como o homem seria então, embora sinta que estaria perto, muito perto, dessa coisa a que se costuma dar o nome de felicidade... Quem sabe se a felicidade não seria exactamente esse pôr o homem a viver, no seu dia de hoje, a sua vida toda, integrar a memória total na parcela de homem que em cada dia somos? Ou talvez não fosse felicidade, talvez fosse um inferno – a irremediável saudade...
(Chi! Aonde eu vim parar, manes da crítica! Com um pouco mais imaginava-me a discretear numa qualquer das nossas profundas páginas de «artes e letras», mestre e pontífice, mentor e orientador... Calma, amigo Saramago! Volte à sua chinela, fale do que a sua mão de artífice conhece!)
Seria agora a altura do estilo, da linguagem. Mas, que se pode dizer ainda do seu estilo que não esteja dito já? Somente que me pareceu mais vivo e mais alerta que nunca, lira de mil cordas, que vai do riso à lágrima, da ternura à ironia, com o ar (aparente) de quem respira sem esforço, de árvore que cresce «ali» porque «ali» está, confiante nas raízes que a sustenta de terra e no sol que a sustenta de luz.
Aqui tem o que penso do seu livro, que tive a honra de ler, em primeiríssima mão. É franco, é sincero quanto aqui está, e nem outra coisa saberia escrever. Como disse numa carta anterior, aceite a minha opinião pelo que vale – a de um simples leitor, talvez apenas um pouco mais experiente que o comum. E disse.
Desçamos agora das alturas e resumamos as questões práticas:
1.ª – A Escola ainda não entrou na tipografia. O Correia (como já tive ocasião de dizer) tem andado desvairado de trabalho, não lhe foi possível tratar dos problemas «técnicos» do livro. Em meados deste mês, contudo, estará mais folgado, então irão ao mesmo tempo Escola e Passageiro (que é nosso, e bem nosso). Setembro e Novembro parece-me boa altura para lançar os dois livros.
2.ª – As 1001 Noites têm uma urgência danada. De tal modo que se o meu Amigo não lhe puder pegar agora, terei eu de fazer a tradução, o que não convinha nada, até porque este volume já trará duas histórias traduzidas por mim. Creia que é com alarme que lhe falo nisto.
Ansioso por o ver cá, abraça-o em nome pessoal e colectivo o seu
José Saramago
P.S. Releio o que escrevi e vejo que não disse metade do que teria para dizer. Em ocasiões destas é que tenho pena de não dispor de uma ou duas colunas de jornal... Paciência!
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