25 de Maio
Almoço com Gabriel García Márquez, que nos mandou recado, apesar de estar meio incógnito em Madrid. Quase três horas à mesa, uma conversa que parecia não querer acabar. Falou-se de tudo: das eleições espanholas, da situação social e política portuguesa, do estado do mundo, de livros e de editores, de Paz e Vargas Llosa, etc. Mercedes e Pilar estiveram de acordo em pertencer ao Departamento dos Rancores, deixando aos respectivos maridos o papel simpático e superior de quem está «acima disso». García Márquez contou um episódio divertido relacionado com a passagem a filme do seu conto «La Santa». Como se sabe, no fim da história o pai da menina morta diz-lhe que se levante e ande, e ela nem anda nem se levanta. Mas a García Márquez, que andava às voltas com o guião, não o satisfazia esse final, até que veio a encontrar a solução: no filme a menina ressuscitaria mesmo. Telefonou então ao realizador (salvo erro, Ruy Guerra) para informá-lo do que tinha decidido, e encontrou-se com um silêncio reticente, logo substituído por uma oposição firme. Que não, que não podia ser, uma coisa era fazer voar uma mulher embrulhada em adejantes lençóis, outra ressuscitar um corpo há tempos falecido, mesmo havendo já indícios milagreiros, como não cheirar mal e não ter peso. Resposta de García Márquez: «Pois é, vocês, estalinistas, não acreditam na realidade.» Outro silêncio, porém diferente, do outro lado da linha. Enfim, a voz ouviu-se: «De acordo.» E a menina ressuscitou.
Segundo dia da «Semana». Tema: «EI escritor como lector del tiempo y medidor de la Historia.» Moderou Césur Antonio Molina e participaram Angel Crespo, Carlos Reis (que hoje mesmo chegou de Portugal) e Juan Rivera. A este não o conhecia. Menos público, interesse igual. Eduardo Lourenço surpreende-se com o conhecimento que estes espanhóis mostram ter dos meus livros. Quase lhe digo que é uma boa compensação para a relativa indiferença da crítica e da ensaística portuguesa, que, ressalvadas as excepções conhecidas, não tem conseguido acertar os seus passos de dança com a minha música. Para muita gente maior e menor, a minha existência no quadro da literatura portuguesa actual continua a ser uma coisa incompreensível e custosa de roer, de modo que andam a comportar-se como se ainda alimentassem a esperança de que, por artes prestidigitativas, eu venha a desaparecer um dia destes, desfeito em pó, fumo ou nevoeiro, levando comigo os livros que escrevi e deixando tudo como estava antes.
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