22 - Maio (segunda). Hoje o Magalhães, médico para poder ser poeta, arranjou-me um encontro com o otorrino que há uma semana me tratou a hemorragia. É um jovem magro e cheio de despacho e hoje atendeu-me com um sorriso como passadeira. Utilizei a passadeira e tudo foi macio. Despachou-me então para uma funcionária que tinha vários aparelhos coscuvilheiros. Pôs-me uns auscultadores enormes como se vêem nos pilotos de aviões e havia fios que iam dar a coisas registadoras. Quando eu ouvisse um apito e quando depois ouvisse rumores grossos, erguesse um dedo a dar sinal. Fui ouvindo. Fui sinalizando. Depois houve apitos e ruídos mais grosseiros no outro ouvido que é o infeliz do lado esquerdo. Depois houve uma tentativa no meio da testa para eu dizer se os sinais eram da direita ou da esquerda. Confesso sem partidarismo que não eram de lado nenhum. E no fim o jovem médico leu-me a sentença. A coisa era bastante simples: doença à vista, mesmo armada, não havia. O que havia era a carga de anos que tinha em cima e peças gastas pelo uso que elas tinham feito de mim. A coisa dizia-se em duas palavras que ele não disse: o que havia é que estava velho e bom para ir para a sucata. E extraordinária coisa: quando me dizem isto, que é dá-lo a entender, fico sempre um pouco encavacado porque se eu próprio o digo, espero sempre que me não tomem a sério, porque na realidade ainda o não sei e não há modos de o aprender. Mas não desisto porque enfim não sou tão estúpido como isso.
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Choveu à farta. Algum desarranjo no pluviómetro celestial. Coisas do São Pedro que já deve estar gágá.
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Trabalhei um pouco no romance. Sempre no Capítulo XIV, que está a abusar da minha paciência.
conta-corrente – nova série I (1989)
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