segunda-feira, 30 de maio de 2011

OS PARDAIS

Um dia destes de manhã, ao entrar no quarto de banho, ouvi um barulho esquisito. Como ventava e chovia que tinha diabo, atribui aquilo ao refluxo do vento na chaminé do respiro. «Que temporal vai lá fora!», pensei, arrepiado por ter de sair à rua. Como de facto saí.
Voltei ao meio-dia. O barulho continuava. «Home! Não está tanto vento como isso», estranhei.
De repente, heureca! (Estando eu no quarto de banho, tinha, por força, de plagiar Arquimedes). Heureca: um pássaro...
Isso mesmo: um rufiar de asas. Por ictos. Primeiro vigoroso, depois num delíquio de esgotamento.
«Um pardal», conclui. Isto porque, frequentemente, os ouço chilrear no telhado. Nada mais fácil do que um deles ter-se empoleirado no caireI da chaminé e caído no buraco.
«Arranjaste-a bonita. Agora desenrasca-te.» E fui à minha vida.
Passei a tarde num monólogo dialéctico: «Devias ter libertado o pardal.» «Como?» «Levantavas a tampa do respiro.» «Boa-te-vai. E eu ia mesmo rebentar a parede por causa dum pardal.» «Não fazias mais do que a tua obrigação.» «Deixa-te de bucolismos. Que diferença faz ao mundo um pardal a mais ou a menos?» «Mete a mão na consciência e tem vergonha.»
Das centenas, se não milhares de pardais que degolei na minha infância. De súcia com o Facaia, meu vizinho de porta e sócio na malandrice. Por noites de Inverno. Daquelas noites de breu, só possíveis nas nossas aldeias de há cinquenta anos. Nesses remotos tempos, pelas seis horas era noite cerrada. Pelas sete, os pardais estavam no primeiro sono, deliciosamente aninhados no palhuço dos combarros. Nós conhecíamos-lhes o poiso. E, depois de ceia, munidos, um de lareiro, outro de lampião, capa e saco, saíamos à caça.
O da luz, conjugando capa e lanterna, desenhava a claridade duma janela na parede. O outro começava a varejar o beiral.
Acordadas em sobressalto, as aves viam o clarão e precipitavam-se para ele. Batiam de cabeça na pedra e tombavam como tordos, que o mesmo é dizer, como pardais. Era só arrebanhar neles para o saco. Rapidamente, porque muitos estavam apenas atordoados e, se lhe déssemos tempo, recuperavam os sentidos e punham-se na alheta.
Saco cheio, dividíamos o espólio.
Saco cheio, é um exagero. Nunca me lembro de o termos enchido. Sem embargo, fizemos caçadas suficientes para encher o papo a toda a malta. Arroz de pardais. Prato muito apreciado nesses remotos tempos do arroz de quinze.
Agora sinto remorsos.
O garoto que eu algum dia já fui, ri-se do velho que hoje sou. «Ó barbas-de-farelo? E os porcos? Desses não tens tu pena. Bem gostas de untar o queixo, pelas matanças. Pois o princípio é o mesmo. Primeiro engordam-se. Depois comem-se. Aos cevados, deitamos-lhes nós o grão. Os pardais, roubam-no eles nas searas e nas eiras. Métodos diferentes, resultados idênticos.» «Com uma diferença. Os porcos não voam, não cantam, não alegram a paisagem.» «Mas enfeitam o prato e compõem o estômago.» «Ai sim? E as andorinhas? Porque não comias tu andorinhas?» «Porque era pecado. As andorinhas são aves sagradas. Os pardais uns profanas.» «E tu um alma de cântaro, um selvagem, um predador sem escrúpulos» «E tu um velho sentimentalão.» «Acabou a Conversa. Concordes ou não, vou libertar o pássaro.»
E dirigi-me ao quarto de banho. Mas o barulho desaparecera. Passei um toco de vassoura pela grelha, em jeito de quem toca xilofone. Nada. «Deve ter morrido.» Fiquei capaz de morrer também.
De noite tive pesadelos.
A janela do meu quarto dá para a eira, o palheiro, o canastro, as árvores da horta. É para mim uma bênção acordar com o sol na vidraça e a algazarra dos pardais lá fora. Fico bem disposto para o resto do dia.
Pois bem. Sonhei que os pardais, zangados por eu lhes não ter salvo o companheiro, se tinham ido embora.
Acordei com as pálpebras molhadas. Devo ter chorado.
Eis senão quando, ao entrar no quarto de banho, oiço de novo o rufio das asas. «Aleluia». Corri por uma chave de fendas. Mas a grelha não estava presa por parafusos, como eu julgara. Eram pregos. Rebentei com eles e abri uma brecha. «Agora é contigo. Salta quando quiseres.»
Saltou imediatamente, meio aturdido, a dar com a cabeça pelas paredes. «Calma, rapaz. Há muito que eu deixei de comer pardais.» «Bem me fio eu...» «E se eu te der uma prova de amizade e recta intenção?» «Venha ela.»
Fui buscar arroz e migalhas.
«Ah! Já sei. O que tu queres é engordar-me primeiro e comeres-me depois. Truque velho...» «Não sejas parvo. O que eu quero é matar-te a fome. Há três dias sem comer, nem forças tens para voar.» «Parece-te. Abre a janela e verás se eu voo ou não.» «Desculpa, mas primeiro tens de matar o bicho. Ninguém entra em minha casa que não tome um quodore. Portanto.»
Depus o prato com as migalhas e o arroz no chão e retirei-me.
Passados momentos entreabri uma frincha da porta. O lafrau debicava sem cerimónias. «Ah! Assim, sim.»
Entrementes rompia a «aurora de róseos dedos» tão querida de Homero. Dei tempo a que o hóspede se banqueteasse e regressei. «Mais uns grãozinhos?» «Obrigado. Estou composto.» «Nesse caso podes ir.»
Abri-lhe a janela. Saltou de jacto, num chilreio de alegria: «Adeus amigo. Eu te perdoo pelos antepassados que me devoraste. Goza o resto dos teus dias de consciência tranquila.»
Imediatamente uma revoada de familiares, amigos e conhecidos lhe veio ao encontro: «Viva! Viva o felizardo que deu um pontapé na morte. Viva o nosso herói!»
Passa do meio-dia.
A festa dos pardais continua. São às centenas, na eira, no palheiro, no canastro, na horta.
Gosto de os ouvir. Felizes, gárrulos, alegres como crianças.
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 96 e ss.)

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