Para um velhote, nada mais reconfortante do que uma boa sesta. O Pai Eterno não foge à regra.
Num dos últimos dias do pretérito mês de Março, estava Ele a bater uma soneca refastelado em coxins de róseas nuvens, quando um longínquo e importuno clamor de vozes lhe chegou aos ouvidos. Julgando tratar-se do zumbido dum trombeteiro, abriu os olhos e pôs a mão a jeito, pronto a esborrachá-lo de encontro ao divino rosto. Como não visse mosquito nenhum, chamou por S. Pedro e inquiriu:
– Pedro? Que barulho é esse que me não deixa dormir?
– Senhor, são os Barrosões a clamar por água.
– Então os Barrosões não têm água, Pedro?
– Não, Senhor. Há quarenta e três dias que não chove e está tudo a morrer à sede: gentes, animais, prados, fontes, ribeiros.
– Não me digas que te esqueceste dos Barrosões, esses nossos fiéis servidores?
– Por acaso esqueci, Senhor.
– Estás velho e caduco, Pedro.
– Com o devido respeito, lembro-Vos que, pelo que por aí dizem, Vós sois muito mas velho do que eu.
– Ou tu ouviste mal ou te enganaram, Pedro. Com todo este aspecto de velho, eu sou eternamente jovem.
– Se tudo e todos envelhecem, porque é que Vós não haveis de envelhecer?
– Pedro, tu podes ter sido um bom pescador, mas, de teologia, não pescas bóia.
– Perdão, Senhor.
– Estás perdoado. Mas acode aos Barrosões, esses nossos devotos e fiéis servidores. Manda-lhes chuva...
– Quantos dias, Senhor?
– Tantos como, por desleixo das tuas obrigações, lhes mandas te de sol ao destempo.
– Quarenta e três, Senhor?
– Não sejas forreta, Pedro. Farta essa gente de água.
S. Pedro correu a abrir as torneiras do céu sobre o Barroso.
Nos primeiros dias os Barrosões cantaram e rirem. Mas agora, após um mês de chuvas ininterruptas, começam a torcer o nariz. Pessoas e animais tremem de frio, os ribeiros alagam as margens, os campos estão encharcados, as plantações e sementeiras da Primavera comprometidas, o ano agrícola ameaçado de ruína. É demais. Os Barrosões não sabem o que hão-de fazer.
Digo-lho eu. Saiam à rua. Façam barulho. Clamem pelo sol. Não deixem dormir o Pai Eterno. Serrazinem-Lhe os ouvidos até que Ele grite por S. Pedro e contra-ordene:
– Fecha essas torneiras, Pedro. Manda sol aos Barrosões.
Que bem precisamos dele. Para trabalhar os campos e usufruir as belezas do mês de Maio, o mais garrido do ano.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 79 e s.)
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