sexta-feira, 27 de maio de 2011

O PARAÍSO PERDIDO

Quando eu era um devorador de bibliotecas, nem o Paradise Lost de Milton me escapou. E confesso que não fiquei muito entusiasmado com o poema do abstruso inglês. Nem admira. Era jovem de mais para me preocupar com a perda de qualquer paraíso, fosse a daquele donde os anjos rebeldes se precipitaram nas parafundas, fosse a daqueloutro donde Adão e Eva foram escorraçados para este vale de lágrimas.
Mas hoje, que estou velho, compreendo, final e dolorosamente, o mito dos paraísos perdidos. Compreendo, porque também perdi o meu. Paraíso da minha infância. Tempo de maravilhas. Era das descobertas. Das coisas vistas pela primeira vez, das palavras ouvidas pela vez primeira. Como eu recordo...
Teria eu quatro, cinco anos, palmo, palmo e meio, andava com as vacas num maninho sobranceiro ao rio Regavão. Nisto, chega-me aos ouvidos estrídula e polifónica orquestra de latidos, desde o fabordão, ão, ão, ão, dos mastins velhos, ao sustenido im, im, caim, dos cachorros meninos de coro e das cadelitas primas donas. Olho no sentido donde vinha o chinfrim e avisto, na linha do horizonte, numerosa matilha encarniçada atrás de coisa que eu, àquela distância, não descortinava o que fosse.
Ainda os cães latiam para além do rio, surde do bicheiro duma touça, mesmo à minha frente, aquilo que eu, na inocência dos verdes anos, julguei ser uma lebre lançada numa corrida de extrema velocidade e elegância no correr.
À noite, corri também com a notícia:
– Ó Pai, vi uma lebre!
– E era grande?
– Era! Com um rabo assim!
E estendi o braço a todo o comprimento, a exemplificar a posição e o tamanho do rabo da lebre. O meu Pai riu-se:
– Assim? – e estendia o braço dele.
– Comprido, peludo, bonito!
O Pai continuava a rir. Amuei:
– Não esteja a fazer pouco de mim...
– Rio-me porque o rabo das lebres é pequeno e arrebitado. Como o das carriças. Já viste uma carriça?
– Então não vi? Até sei o ninho duma, no muro da horta, entre as heras.
– Reparaste-lhe no rabo?
– Reparei.
– Pois o da lebre é desse tamanho, um pouco mais estreito, arrebitado para o lombo.
– Mas o da lebre que eu vi...
– Não sejas pateta. O que tu viste foi uma raposa.
Quedei sem fala, meio atónito, meio envergonhado. Uma raposa...
Ainda hoje guardo, intacta na minha retentiva, a luminosa imagem da primeira raposa da minha vida...
Muitas outras vi depois, umas reais, pelos caminhos, montes e vales deste nosso Barroso, outras metafóricas, emboscadas nas cabeças dos mestres, sempre prontas a abocanhar-me os coçados fundilhos que rompi pelos bancos escolares.
Mas com nenhuma delas me diverti tanto como com aquela que ontem me veio ao encontro.
Ontem, como toda a gente sabe, foi domingo, dia de sol e caça.
Secundum est us meus1, como diria Horácio, saí a passeio pelo caminho que de Peireses leva à Ponte Romana. Ao assomar ao Alto de Vale da Ponte, donde se avista a tal pequena maravilha arquitectónica, encontrei um podengo. Atrás do podengo vinha um meu vizinho e amigo de espingarda ao ombro. Que ia ver se matava uma lebre.
Estive para lhe pedir que deixasse a lebre em paz. Lembrando-me, porém, de que os viciados na caça, não compreendem certas idiossincrasias de certos sujeitos, despedi-me sem mais aquelas e comecei a descer para a ponte.
O eco dum tiro lá para as touças do outro lado do rio, subiu o vale. De resto, os campos pareciam desertos e silenciosos.
Espraiava eu a vista por eles quando, num poulório à minha esquerda e à distância duns vinte passos, descubro uma raposa aos grilos.
«Aos grilos não deve ser, porque não é tempo deles» – disse com os meus botões. «Talvez aos musaranhos. Ou às toupeiras. Isso mesmo. Às toupeiras, muito activas nesta época do ano».
Fosse do que fosse que a zorra andasse à cata, fazia-o com evidente prazer. Era uma raposeta nova, duns oito ou nove meses, com todo o encanto e inocência duma criança. Cirandava cá e lá, focinho rente à relva, fareja que fareja. De guinada, num airoso salto de quem mergulha, introduzia as patas dianteiras no lameiro e escavava, freneticamente. Se a manobra falhasse, recomeçava de novo. Se desse resultado, estendia-se ao comprido, a saborear o petisco entre as mãos.
Papo cheio, ou, pelo menos, composto, deitava-se, a fazer o quilo. De repente, erguia-se, dava um salto, uma cabriola, quase um passo de dança. Depois sentava-se, a palitar os dentes, a lamber o pêlo, a sacudir a samarra. Parecia uma adolescente enamorada do próprio corpo. Higiene feita, voltava ao folguedo.
Era deveras enternecedor vê-la assim descuidada, de alma e coração entregue ao prazer da vida, indiferente aos caçadores, aos cães, à minha presença. E eu especado a olhar para ela. E ela quase ao alcance da minha mão.
Ocasionalmente, ergueu os olhos, viu-me e disparou como uma seta, rectilínea, elegante, espanador do rabo na horizontal – exactamente como eu a vi, pela primeira vez, há uns bons setenta anos.
Maravilhas da nossa terra...
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1 Tradução literal: «segundo é costume meu.»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 93 e ss.)

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