A minha infância já vai longe. Mas há memórias dela que persistem. Entre elas, a dum soberbo cavalo pigarço, garanhão de muito poder e ronha. Fez-me tais patifarias que ainda hoje, à distância de setenta anos, me perturba as noites com pesadelos em que ele me ataca de orelhas coladas ao caco, dentes prontos a morder e ferraduras prontas a disparar, uns e outras armas letais.
Felizmente, depois deste corcel terrível, outros rocins mais cordatos e amaráveis entraram na minha vida. Por mor deles, sempre gostei de cavalos.
Por isso quando, nos primeiros dias deste Agosto aldeão, o qual, ai de mim, está a deslizar mais ligeiro do que regato de montanha, a minha mulher, o meu filho e a namorada (namorada do filho, não haja confusões) me desafiaram para «ir aos cavalos», «É para já!», respondi com o entusiasmo e a saudade dos meus belos tempos de jovem domador de potros.
E lá fomos até ao Centro Hípico do Larouco. Era sábado, creio, estava frio, a cancela da vedação escancarada e o vasto terreiro deserto. Viam-se apenas cabeças de cavalos à janela, três podengos de orelha murcha e cauda ronceira e um morzelo de boa estampa a cabriolar num recinto aramado.
Fomos entrando. Saiu-nos ao encontro um jovem simpático e atencioso, o qual, segundo deduzi, acumula as funções de encarregado, tratador e mestre de equitação. Perguntei-lhe se alugava cavalos. Respondeu que sim e quis saber se desejávamos cavalgar a campo descoberto ou no picadeiro.
Prudentemente, não fosse o diabo tecê-las, respondi:
– No picadeiro. Traga aí um cavalo de confiança.
Trouxe-nos uma pileca de ar bonacheirão.
– Quem monta primeiro? – perguntou.
– Eu, para mostrar aqui aos rapazes como se faz – respondi.
E, com uns garbos de velho marialva, aprendidos outrora como Belino da Volta, de Torgueda, finquei o pé esquerdo no estribo. Mas, oh, céus!, ao tentar jogar a perna direita, esta recusou-se vergonhosamente a obedecer.
O instrutor acudiu presto e, com muita urbanidade e profissionalismo, levou-me a perna para o sítio.
– Diabo! – exclamei – Estes cavalos de agora são mais altos do que os do meu tempo...
Os rapazes riram-se. Na verdade, o dito cavalo não passava duma garrana adrede treinada para crianças e principiantes. Tão paciente que permitiu que eu fizesse uns bonitos sem lhe beijar as tetas.
– Pronto! – disse aos rapazes – Agora que já vistes como se cavalga, experimentai vós.
Neste lance apareceu o dono do Centro Hípico, o meu hospitaleiro amigo Ricardo Moura, a quem eu, para o distinguir dos inúmeros Mouras de Barroso, prefiro chamar Ricardo de Padornelas. Se dizemos Tales de Mileto, Pero da Covilhã, Pantaleão de Aveiro, porque não Ricardo de Padornelos? Ele bem merece o cognome pelo impulso que, como Presidente da Junta de Freguesia e empresário, está a imprimir à sua terra natal.
Fez questão de nos mostrar os cavalos do Centro, uns vinte ao todo.
E qual não foi a minha surpresa quando, logo na primeira cavalariça, me surge a encarnação do Pigarço da minha infância...
Perante o meu espanto, o Ricardo tirou-o para fora e exibiu-o. Que belo garanhão! Possante, avantajado, inteligente, alegre, dócil.
Estive para pedir ao meu amigo que o aparelhasse para eu ir dar uma volta. Recordado, porém, da fraca figura que acabara de fazer no picadeiro, encolhi-me.
Vistos os cavalos, o Ricardo fez de novo questão de que o acompanhássemos a Padornelos. Queria mostrar-nos a casa que havia recuperado para «Turismo Rural».
Nova surpresa. Casa de pedra antiga, varanda de madeira, divisões amplas, aquecimento central. Extremo bom gosto na decoração, na escolha dos móveis, nos jogos de pedra e madeira. Muito espaço, muita luz, muito asseio. Sossego. Deve ser agradável passar lá umas férias. Em Padornelos, «Casa do Barroso». Aqui a recomendo.
Sempre hospitaleiro, o Ricardo ofereceu a casa, a merenda, falou doutros projectos que traz em mente.
Em todos lhe desejo êxito e fortuna. Dum modo especial no Centro Hípico. Acho que o Centro Hípico foi uma ideia formidável. Os cavalos têm uma larga tradição em Barroso. Na minha infância não havia Barrosão, rico ou pobre, que não botasse um bucéfalo de algum espavento e muita rópia. Até os advogados e os médicos se deslocavam a cavalo. Que pena que os cavalos hajam desaparecido das nossas aldeias. Ainda bem que os Barrosões dispõem agora dum Centro Hípico onde os velhos podem ir, como eu fui, matar saudades, e os mais jovens aprender a mui alta e nobre arte da equitação.
Perto do Centro Hípico do Larouco, há uma rampa de lançamento de «parapente» e um circuito para corridas de carros. Têm-se realizado provas de vela e motonáutica nas nossas albufeiras. Por toda a parte se organizam campeonatos de chegas de bois. Porque não um Hipódromo?
Aqui fica a sugestão.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 87 e ss.)
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