sábado, 16 de março de 2013

16 – Março (sexta). [1990]

Que é que me atrai e repele em Nietzsche? Não sei. Li muito. Devia portanto interessar-me bastante. Primeiro houve naturalmente que cumprir os meus deveres culturais. Mas isso não contava. Há outros filósofos importantes que passei por alto. A morte de Deus foi para mim um assunto nobre. A destruição do «sistema» e um modo novo de filosofar que tem que ver com o ensaísmo ou mesmo a literatura, também. Mas tudo o que remete para uma certa sobranceria onde entreluz um prenúncio de racismo e mesmo nazismo, o seu desprezo pelos fracos, a imortalidade, tudo o que humaniza o cristianismo irrita-me. E há o enigmático «eterno retorno», que ele não expôs detalhadamente mas ao qual apenas alude às vezes no Zaratustra e na sua Gaia Ciência (§ 341) e que me intriga como a toda a gente. Numa interpretação imediata, ele é absurdo como suponho se não costuma admitir. Para se repetir o passado temos de saber qual o período repetível: um ano? mil anos? cem mil anos? Não está estabelecido. Ora bem, se não está, então não pode haver eterno retorno. O meu acto presente de escrever repete que outro acto passado? Porque se não há uma demarcação do período em que me repito, então este acto de escrever repete este actual acto de escrever, ou seja não saio dele. Se o de hoje repete o de ontem, então, decerto, houve um retorno do que aconteceu ontem. Se o de há um ano, então, decerto, repito o de há um ano. Mas se não há um período demarcado para a repetição, então o acto presente de escrever é ele próprio a repetição de si mesmo, ou seja, não há repetição. Em tal caso é mais lógica a interpretação de Klossowski e Deleuze segundo a qual o eterno retorno é a repetição do mesmo com uma variação que o retoma e aperfeiçoa. Repetir é não sair do que se é com o processo de uma reactivação desse mesmo que o melhora. O super-homem seria o homem que se supera nesse aperfeiçoamento (se estou bem lembrado da interpretação referida),
Mas quantos problemas Nietzsche levanta aos seus hermeneutas. Assim, a morte de Deus implica a morte da nossa individualidade. Nietzsche quer matar realmente o «sujeito». Mas a destruição da individualidade de cada um é um absurdo incomensurável. Porque é como pretender cortar uma mão com essa própria mão. Quem nega o sujeito é o próprio sujeito. E que tem Deus que fazer no meu auto-reconhecimento como indivíduo ou pessoa que sou? É «lógico» derivar-se a «morte do homem» da «morte de Deus» apenas num sentido bíblico, ou seja no da morte do «rei da criação» pelo seu nivelamento com todos os animais e mais extensamente com toda a Natureza. Mas eu não mudo de consciência de mim com ou sem Deus.
Mas estou cansado e vou-me estender um pouco. Com Deus ou sem ele – estender-me e amolecer.
*
Afinal veio o fotógrafo para a revista Ler do Círculo de Leitores e cá estou a fazer de escritor. Que extraordinária a ficção com que se faz a verdade. É verdade que escrevo e fumo durante, se os nervos me não dizem que não. Mas é mentira que escrevo, para ser fotografado em ficção para o ser. Acabou-se. Acabou-se-me é a paciência para continuar a fingir, mas o fotógrafo não é de opinião que se acabe. Entretanto acabou-se-me o papel antes de se acabar o resto. E o cigarro que ajuda a compor o resto não me está a saber bem aos nervos. E não posso parar – vou escrever no vazio do espaço que já não tenho. E o assalto que não cessa? O Luís Amaro chegou com as provas do livro e não me é possível (Interrompido).
VF 

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