segunda-feira, 11 de março de 2013

11 – Março (domingo). [1990]

A Rita fez ontem vinte anos. É uma conta redonda que como todas elas tem o sinal de um fechar de contas e de um abrir de conta nova. Rita não me pareceu sentir isso. Com estranheza minha, da do que eu fui quando cheguei aos vinte, ela apenas sentia que estava velha. Vinte anos eram outrora o começo triunfal da nossa maioridade ou seja de um verdadeiro começo de se ser gente. Mas hoje a juventude acelera as coisas e sente-se gente mais cedo. De modo que as contas têm um outro acerto. A Regina sugeriu-me que eu fizesse uns versos para a cerimónia de investidura. Tenho feito um pouco disso a vários propósitos. É um jogo de diversão como a sueca ou o dominó em tempos de isso se usar. Mas aborreceu-me ser instrumentalizado como um macaquinho a quem se pede uma habilidade. E recusei-me. Em todo o caso, já a sós comigo e como se fosse eu a ter a lembrança, lá versejei. Rita gostou com o seu gostar já um pouco cansado das brincadeiras juvenis. E como a minha habilidade não me acrescenta glória visível, não reproduzo os versos aqui. Coisa curiosa no entanto a anotar: em três cópias que fiz dos meus versos, cometo o mesmo erro de escrever «fizeste» por «somaste» para rimar com «tiraste». E sempre que reli essas cópias o que reli foi «somaste» onde escrevera «fizeste». Tal é a força subjectiva a sobrepor-se e a dominar a força da objectividade.
E pronto. Almoçámos no «Caleidoscópio», no Campo Grande, e como eu tinha sido acometido de uma fome invencível de que já nem tinha memória, comi bem e bebi melhor. E à pergunta formal de «como está isso»? – ou seja o manjar que escolhi – achei-a absurda e sem sentido, porque o bom apetite, como sabemos, come pedras e acha bom. Depois é que reconsiderei que afinal o porco, de que eu manducara uma costeleta, devia ser outro viúvo da porca de Murça…
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Gostava tanto de saber o que não sei. Não para o saber, porque e depois? Como iria mover-me com tanta carga? Para o ter passado ao meu sangue no que é o seu espírito e leveza. Para o guardar numa arca, no que é a sua matéria e carrego.
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Como estou triste. E porque é que estou triste? Não sei. Estou. Há-de haver razões, porque eu prezo-me de ser um animal racional. Mas elas devem vir desde o meu berro ao nascer e já agora não vale a pena saber. Estou triste. E não me macem com porquês. É aliás uma tristeza calma e tépida. Não se está lá mal. Vou mesmo na corrente.
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Aceito cada vez mais a morte como quem fecha à noite a porta de casa. Mas assusto-me sempre, quando se me solta a ameaça de uma morte súbita, como quem ouve pela noite baterem-lhe à porta. Onde está o que é mais verdade?
VF 

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