domingo, 31 de março de 2013

31 – Março (sábado). [1990]

Hoje aconteceram três coisas que me apetece fazer acontecer aqui. A primeira a ser coisa foi que o Lúcio fez hoje prova da cadeira «mais difícil» do quinto ano (que é naturalmente a que se faz) e diz ele que lhe correu bem. Continuamos portanto em «contagem decrescente». A segunda a pôr-se-me à frente foi que démos o nosso carro à Rita. Tem só 30 mil quilómetros, mas já oito anos de vida. Gilo quis primeiro preparar tudo (papéis, revisão, afinação) antes de dar a notícia para ela não andar aí uma semana em frenesim. Posto tudo em condições, hoje deu-lhe a chave. E à tarde veio «agradecer-nos». E eu tive um gosto imenso em vê-la «feliz». Irradiava dela uma alegria que era maior do que ela e não achava escape que a vazasse toda. Beijou-me, abraçou-me, tinha o olhar iluminado. E eu pude ver que era possível haver uma alegria que eu já não fazia ideia que pudesse existir. Tinha um carro e uma montanha de coisas agradáveis nele que ela não sabia bem o que fossem. A terceira coisa a sê-lo mesmo foi irmos buscar à casa de molduras um grande e velho retrato de meus pais. Já devo ter falado dele, porque é demasiado belo para guardar só para mim a sua beleza. Deve ter sido tirado pouco depois de chegarem à América, e assim a pose mantém ainda o seu modo hirto de posar para retratos aqui. Estão em pé, de braço dado e minha mãe ostenta na outra mão que não está no braço de meu pai, uma malinha em que parece ter muito orgulho. Estão sérios, compenetrados do acto grave de tirarem o retrato. E têm uma confiança humilde e serena. Agora há que inventar um lugar numa parede para o retrato se pendurar. A ver se então o olho com a ternura que não entendo bem por me ser ainda confusa na confusão do meu sentir. São os meus pais. Devem ter uns setenta anos de retrato para encherem o meu imaginário. Devem estar no limite de quase a minha vida inteira. E é essa distância que eu gostaria de preencher com o que dissesse tudo o que vivi e não sei…
*
E como chove. É uma chuva batida a vento desencabrestado. A tarde escurece rapidamente. Ouço na rádio uma cantata de Bach. Sento-me no sofá e fecho os olhos no incerto de olhar o que não vejo. E tudo isto é absurdo na beleza incrível de haver vida e eu estar nela como se a fosse…
VF

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