terça-feira, 19 de março de 2013

19 – Março (sexta). [1990]

Estamos em Fontanelas (regressamos amanhã) e não registar o facto seria atestar-me uma insensibilidade córnea ou uma desatenção de parvo. Porque está um tempo de verão engrinaldado de primavera. A glicínia coroou o portão da entrada com o seu ar festivo dos seus cachos de azul quase roxo e com um perfume perceptível ao meu nariz azul quase roxo e com um perfume perceptível ao meu nariz de cortiça. É o sinal de boas-vindas que se estende mesmo até Lisboa onde tivemos ontem a visita do Laura António com o seu rancho e hoje do Alberto Silva que fora a Lisboa de Évora. Mas todo o ar se perfuma de flores invisíveis e sobretudo de uma alegria feita de luz. Mas eu pouco tenho aproveitado da festa, porque trouxe comigo as provas do romance e nos intervalas de não haver visitantes amarro-me à banca com o meu dever de escritor. O bom Luís Amaro deu-lhe a primeira vista de olhos, que é uma vista inquisitorial como eu preciso. E lá me moveu uma caça implacável às vírgulas, às repetições de palavras, a algumas regras de concordância. Afora, já se vê, às gralhas da composição. O mais tormentoso para mim foi a repetição de alguns termos. Porque o estilo coloquial do livro, que é uma «carta», não me dava margem fácil para sinónimos. Por exemplo, a adversativa «mas». Porque era extremamente problemático deitá-la fora e promover ao seu lugar um «porém» ou «contudo» ou mesmo «todavia». Outro tormento, talvez mais sádico, foi a substituição do «ainda». Uma ou outra vez fiz concessões à minha fraqueza e deixei ficar. De todo o modo isso foi bastante para me não poder rever com vaidade na minha glória de criador. Quando o Luís Amaro era mais tolerante e me deixava passar uma ou outra página certeira, lá se dava o caso de eu me espanejar na alma e não achar mal. Mas foi raro. De todo o modo, um ou outro trecho, com ou sem tratos de polé, não me pôs contentamento na minha presunção. E o mais doloroso foi eu perceber como deveria ter feito. Mas basta às vez uma frase ou outra para se ir abaixo todo o baralho. E haveria então que voltar ao princípio. Mas, que diabo, também lá há coisas muito aceitáveis, mesmo para a escrita gloriosa dos meus irmãos em escrita. E se eles disserem ou pensarem o contrário, são mentirosos ou têm o gosto de uma galinha – que em todo o caso não é tão estúpida como isso. E disse.
Mas amanhã temos de regressar a Lisboa. Em primeiro lugar porque vou tomar posse de um carro novo. Sim, sim. Novo. E com o aparato dos de um senhor dos petróleos da Arábia. Palavra. É largo como a minha grandeza, é branco como a minha alma e é remansoso como o meu sedentarismo. E não digo a marca porque publicidade sim, mas à borla não. Espero agora viajar mais por largo e não no raio de acção galináceo, que é o do percurso Lisboa-Fontanelas. E dar-lhe com isso a liberdade de fazer os seus exercícios de velocidade para manter em forma os seus cavalos – que são bastantes e davam quase para encher uma cavalariça.
E aqui está como nesta escrita desenfastiada, eu próprio dei exercício à minha perna ligeira, descansada assim a outra, mais grave no seu pé de chumbo.
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E os estupores dos pássaros que se estão nas tintas para as flores e a alegria, só porque o seu cronómetro já electrónico lhes diz que ainda não é tempo disso? Dá-me vontade de lhes berrar – mandai à merda o cronómetro e vinde ver a festa que por aqui vai. Mas não digo porque se calhar mandavam-me eles a mim. E eu não estou muito inclinado a ir.
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Que linda tarde de êxtase e de luz. Os pinheiros imóveis olham o pôr-do-sol até onde lhes é visível. E eu olho neles a minha longa meditação. Alegria serena, a beatitude. A mais vasta e profunda. Porque é a do universo no seu ser.
VF 

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