Estamos em Fontanelas
(regressamos amanhã) e não registar o facto seria atestar-me uma
insensibilidade córnea ou uma desatenção de parvo. Porque está um tempo de
verão engrinaldado de primavera. A glicínia coroou o portão da entrada com o
seu ar festivo dos seus cachos de azul quase roxo e com um perfume perceptível
ao meu nariz azul quase roxo e com um perfume perceptível ao meu nariz de
cortiça. É o sinal de boas-vindas que se estende mesmo até Lisboa onde tivemos
ontem a visita do Laura António com o seu rancho e hoje do Alberto Silva que
fora a Lisboa de Évora. Mas todo o ar se perfuma de flores invisíveis e
sobretudo de uma alegria feita de luz. Mas eu pouco tenho aproveitado da festa,
porque trouxe comigo as provas do romance e nos intervalas de não haver
visitantes amarro-me à banca com o meu dever de escritor. O bom Luís Amaro
deu-lhe a primeira vista de olhos, que é uma vista inquisitorial como eu
preciso. E lá me moveu uma caça implacável às vírgulas, às repetições de
palavras, a algumas regras de concordância. Afora, já se vê, às gralhas da
composição. O mais tormentoso para mim foi a repetição de alguns termos. Porque
o estilo coloquial do livro, que é uma «carta», não me dava margem fácil para
sinónimos. Por exemplo, a adversativa «mas». Porque era extremamente
problemático deitá-la fora e promover ao seu lugar um «porém» ou «contudo» ou
mesmo «todavia». Outro tormento, talvez mais sádico, foi a substituição do
«ainda». Uma ou outra vez fiz concessões à minha fraqueza e deixei ficar. De
todo o modo isso foi bastante para me não poder rever com vaidade na minha glória
de criador. Quando o Luís Amaro era mais tolerante e me deixava passar uma ou
outra página certeira, lá se dava o caso de eu me espanejar na alma e não achar
mal. Mas foi raro. De todo o modo, um ou outro trecho, com ou sem tratos de
polé, não me pôs contentamento na minha presunção. E o mais doloroso foi eu
perceber como deveria ter feito. Mas
basta às vez uma frase ou outra para se ir abaixo todo o baralho. E haveria
então que voltar ao princípio. Mas, que diabo, também lá há coisas muito aceitáveis,
mesmo para a escrita gloriosa dos meus irmãos em escrita. E se eles disserem ou
pensarem o contrário, são mentirosos ou têm o gosto de uma galinha – que em
todo o caso não é tão estúpida como isso. E disse.
Mas amanhã temos de regressar a Lisboa.
Em primeiro lugar porque vou tomar posse de um carro novo. Sim, sim. Novo. E
com o aparato dos de um senhor dos petróleos da Arábia. Palavra. É largo
como a minha grandeza, é branco como a minha alma e é remansoso como o meu
sedentarismo. E não digo a marca porque publicidade sim, mas à borla não.
Espero agora viajar mais por largo e não no raio de acção galináceo, que é o do
percurso Lisboa-Fontanelas. E dar-lhe com isso a liberdade de fazer os seus
exercícios de velocidade para manter em forma os seus cavalos – que são
bastantes e davam quase para encher uma cavalariça.
E aqui está como nesta escrita
desenfastiada, eu próprio dei exercício à minha perna ligeira, descansada assim
a outra, mais grave no seu pé de chumbo.
*
E os estupores dos pássaros que se estão
nas tintas para as flores e a alegria, só porque o seu cronómetro já
electrónico lhes diz que ainda não é tempo disso? Dá-me vontade de lhes berrar –
mandai à merda o cronómetro e vinde ver a festa que por aqui vai. Mas não digo
porque se calhar mandavam-me eles a mim. E eu não estou muito inclinado a ir.
*
Que linda tarde de êxtase e de luz. Os
pinheiros imóveis olham o pôr-do-sol até onde lhes é visível. E eu olho neles a
minha longa meditação. Alegria serena, a beatitude. A mais vasta e profunda.
Porque é a do universo no seu ser.
VF
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