Quanto a vida me tem maltratado. Perversa.
Eu que tanto a amei. E logo desde a infância com maroteiras que se não
esquecem, mesmo quando já as não lembro. Na juventude então, que fartote. E
depois na idade adulta. Mas são coisas de que se não deve falar para não apanhar
ainda por cima com a execração alheia. Comer e calar é a regra da boa educação.
Podia ao menos agora na velhice haver um pouco de misericórdia. Pois sim.
Massacre do irmão corpo, dos escribas meus irmãos, da invencível incompatibilidade
de quantos me estão mais na proximidade. O resultado de tudo isso é ter a alma
num lodaçal. O curioso é que a interiorização de tudo isso, como se diz, é
criar eu uma aversão incomensurável por mim próprio. Estão a ver? Eu próprio
não pude conviver comigo que é com quem tenho irremediavelmente de conviver.
Detesto-me. Converti em mim o que de detestável veio sobre mim de toda a parte.
E todavia, às vezes penso, não me devia ter tanto asco assim. Fiz coisas,
cumpri, não fui de todo desprezível para haver assim esse desprezo. Das
irritações que me vêm de fora cria-se-me a irritação que me vem de dentro. E às
vezes já não sei como é que eu consigo pagar o justo pelo pecador. Porque os
meus pecados não são assim tanto de ir para o inferno em que vivo. Mas são. O
enervamento que me toma é contra mim que por fim o faço convergir. Devia poder
separar o que é do lado de lá do que é do lado de cá. Há pecados que naturalmente
me pertencem. Mas eles engrossam-se com os que me atiram à cara e por uma
alquimia pervertida são logo meus também. Gostava de ter afinado o meu saber psicológico
para entender. Mas não se entende. Na minha aldeia as mães desancavam os filhos
não apenas pelas faltas que cometiam mas pelas que davam azo a que outros
cometessem e os apanhavam no meio. E às vezes mesmo longe desse meio. Nas zangas
familiares com os maridos, por exemplo, os filhos é que apanhavam. Deve pois
haver uma lei inscrita no eterno de que todos somos culpados por todo o mal que
acontece no Universo. Eu acabo por me culpar a mim. E é neste inferno que vivo
sem o merecer. Quem faz as contas do deve e haver? Quem deve e quem há? Não se
sabe. Há-de um dia saber-se no infinito onde já nem Deus estará, para haver
alguém que entenda.
*
Quando Marx pretendeu pôr Hegel de pernas para baixo,
porque em baixo estava a cabeça, foi um bocadinho estúpido. A História do homem
é a do seu Espírito, o qual é «objectivo», ou seja identificado com o ser.
Acaso é concebível que isto não seja concebível? Tão simples. A realidade
universal é no homem que se exprime e essa expressão é o Espírito. Não limitado a
ela, para não ficar logo paralítico, mas incomensuravelmente até ao fim dos
séculos – embora Hegel quisesse que se reconhecesse totalmente com ele. Há o
ser e há o que ele é em pensamento. E este pensamento não pode estar fora desse
ser, mas deve confundir-se com ele. Como conceber a História fora desse ser
feito Espírito? Como conceber a História sem ser espírito? Espírito em si é
coisa oca ou vazia. O ser sem ele é impensável e tem de ter em que seja
pensamento, nem que seja Deus. Para Hegel, aliás, Deus está aqui muito bem na
terra, onde Espinosa o
instalou, e o que Hegel fez foi investi-lo do próprio Espírito humano,
irmanando-o ao Ser que existe
enquanto pensado pelo homem. Portanto, e tomando atrás, não pode haver História
sem que seja Espírito. Marx ao pôr a matéria como fundamento cometeu uma tolice.
Pois que diabo será a matéria não investida do espírito para a fazer existir? E
dar-lhe a primazia é uma bizantinice,
porque não tem sentido dizer-se que primeiro é a matéria e depois é que é o
espírito. Para sabermos que seria assim, que se imagine o Mundo sem um ser que o pensasse.
É mesmo o erro de Berkeley,
porque é no pensar que o ser começa a existir. Com Husserl – e antes dele em David Hume – sabemos que o
pensar no vazio não tem sentido. Mas Hegel já disse tudo ao unir ser e pensar.
A História do homem é a do seu Espírito. A menos que o bruto animal também
construa a sua. E que é que sobra de todo o passado humano, além do que dele
pensamos, ou seja do seu Espírito? É o Espírito ou a Ideia ou o Absoluto que se distende pelo
tempo no alargamento ou esclarecimento de si na própria mente do homem. E ao
pôr o Espírito de cabeça para cima fez Hegel muito bem. Marx é que pôs o homem
de pernas para o ar.
Mas paro aqui porque eu é que já tenho a
cabeça para baixo com o peso do que lá fui pondo enquanto me aqueço ao fogão
neste apagamento da tarde, para lá das janelas a toda a roda da sala. E o
cigarro a acompanhar não me faz bem no que importava à leveza do meu ser
mortal. Ponto final, portanto. A ver se ainda sou pensante para ler o
suplemento literário do Público, que
é um jornal saído ontem mas anunciado já há séculos, como é próprio dos Messias e dos profetas seus trombeteiros.
VF
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