quarta-feira, 6 de março de 2013

6 – Março (terça). [1990]

Quanto a vida me tem maltratado. Perversa. Eu que tanto a amei. E logo desde a infância com maroteiras que se não esquecem, mesmo quando já as não lembro. Na juventude então, que fartote. E depois na idade adulta. Mas são coisas de que se não deve falar para não apanhar ainda por cima com a execração alheia. Comer e calar é a regra da boa educação. Podia ao menos agora na velhice haver um pouco de misericórdia. Pois sim. Massacre do irmão corpo, dos escribas meus irmãos, da invencível incompatibilidade de quantos me estão mais na proximidade. O resultado de tudo isso é ter a alma num lodaçal. O curioso é que a interiorização de tudo isso, como se diz, é criar eu uma aversão incomensurável por mim próprio. Estão a ver? Eu próprio não pude conviver comigo que é com quem tenho irremediavelmente de conviver. Detesto-me. Converti em mim o que de detestável veio sobre mim de toda a parte. E todavia, às vezes penso, não me devia ter tanto asco assim. Fiz coisas, cumpri, não fui de todo desprezível para haver assim esse desprezo. Das irritações que me vêm de fora cria-se-me a irritação que me vem de dentro. E às vezes já não sei como é que eu consigo pagar o justo pelo pecador. Porque os meus pecados não são assim tanto de ir para o inferno em que vivo. Mas são. O enervamento que me toma é contra mim que por fim o faço convergir. Devia poder separar o que é do lado de lá do que é do lado de cá. Há pecados que naturalmente me pertencem. Mas eles engrossam-se com os que me atiram à cara e por uma alquimia pervertida são logo meus também. Gostava de ter afinado o meu saber psicológico para entender. Mas não se entende. Na minha aldeia as mães desancavam os filhos não apenas pelas faltas que cometiam mas pelas que davam azo a que outros cometessem e os apanhavam no meio. E às vezes mesmo longe desse meio. Nas zangas familiares com os maridos, por exemplo, os filhos é que apanhavam. Deve pois haver uma lei inscrita no eterno de que todos somos culpados por todo o mal que acontece no Universo. Eu acabo por me culpar a mim. E é neste inferno que vivo sem o merecer. Quem faz as contas do deve e haver? Quem deve e quem há? Não se sabe. Há-de um dia saber-se no infinito onde já nem Deus estará, para haver alguém que entenda.
*
Quando Marx pretendeu pôr Hegel de pernas para baixo, porque em baixo estava a cabeça, foi um bocadinho estúpido. A História do homem é a do seu Espírito, o qual é «objectivo», ou seja identificado com o ser. Acaso é concebível que isto não seja concebível? Tão simples. A realidade universal é no homem que se exprime e essa expressão é o Espírito. Não limitado a ela, para não ficar logo paralítico, mas incomensuravelmente até ao fim dos séculos – embora Hegel quisesse que se reconhecesse totalmente com ele. Há o ser e há o que ele é em pensamento. E este pensamento não pode estar fora desse ser, mas deve confundir-se com ele. Como conceber a História fora desse ser feito Espírito? Como conceber a História sem ser espírito? Espírito em si é coisa oca ou vazia. O ser sem ele é impensável e tem de ter em que seja pensamento, nem que seja Deus. Para Hegel, aliás, Deus está aqui muito bem na terra, onde Espinosa o instalou, e o que Hegel fez foi investi-lo do próprio Espírito humano, irmanando-o ao Ser que existe enquanto pensado pelo homem. Portanto, e tomando atrás, não pode haver História sem que seja Espírito. Marx ao pôr a matéria como fundamento cometeu uma tolice. Pois que diabo será a matéria não investida do espírito para a fazer existir? E dar-lhe a primazia é uma bizantinice, porque não tem sentido dizer-se que primeiro é a matéria e depois é que é o espírito. Para sabermos que seria assim, que se imagine o Mundo sem um ser que o pensasse. É mesmo o erro de Berkeley, porque é no pensar que o ser começa a existir. Com Husserl – e antes dele em David Hume – sabemos que o pensar no vazio não tem sentido. Mas Hegel já disse tudo ao unir ser e pensar. A História do homem é a do seu Espírito. A menos que o bruto animal também construa a sua. E que é que sobra de todo o passado humano, além do que dele pensamos, ou seja do seu Espírito? É o Espírito ou a Ideia ou o Absoluto que se distende pelo tempo no alargamento ou esclarecimento de si na própria mente do homem. E ao pôr o Espírito de cabeça para cima fez Hegel muito bem. Marx é que pôs o homem de pernas para o ar.
Mas paro aqui porque eu é que já tenho a cabeça para baixo com o peso do que lá fui pondo enquanto me aqueço ao fogão neste apagamento da tarde, para lá das janelas a toda a roda da sala. E o cigarro a acompanhar não me faz bem no que importava à leveza do meu ser mortal. Ponto final, portanto. A ver se ainda sou pensante para ler o suplemento literário do Público, que é um jornal saído ontem mas anunciado já há séculos, como é próprio dos Messias e dos profetas seus trombeteiros.
VF 

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