Quando vou
buscar o jornal, encontro com frequência um casal, de idade próxima da minha,
que um pouco sempre me emociona e intriga. De braço dado, muito compostos,
muito integrados nessa compostura, lembram-me um casal romano no tempo de Augusto, exemplo de um certo
ideal de uma união honesta. Será verdade? Nós temos desde a nascença quem nos
ensine a ser gente. São os pais para a revelação do Mundo, é a escola para a
infância, a adolescência e a juventude. É depois a própria vida que vai fazendo
o que pode para a nossa formação de adultos, e depois acabou. A velhice ninguém
a ensina e a sua aprendizagem temos de fazê-la nós até à indiferença. Todo o
ser vivo tem uma pele ou uma casca a defendê-lo. Mas ele é permeável a uma
emoção, a um descascar de um fruto ou a um martelo para o partir quando é
preciso. A pele do velho endurece para a sua defesa, que é o que sobretudo tem
de aprender. Até que nenhum martelo a possa já partir, a não ser o da morte,
que parte tudo.
*
O arquitecto Campos Matos, que
é um fanático admirador do Eça como eu (embora o meu fanatismo vá tendo já as
suas quebras) publicou no JL da outra
semana (o 400.º) um artigo sobre o nosso grande homem e a filosofia. E
escreve-me hoje a pedir a minha opinião. Procurei o número para o reler, mas já
o não encontrei. De quando em quando, para baixar o nível da montanha dos
periódicos, a Regina leva uma braçada deles aos nossos vizinhos, como em
Fontanelas os transporta para a senhora Joana que nos vendia o leite, agora
comprado na loja empacotado. De modo que não pude reler o artigo em questão.
Mas pelo telefone, e apoiado na memória que dele me ficou, respondi ao
arquitecto que
Toda a época tem a sua óptica com que lê
toda a contemporaneidade. E o que não cabe nessa óptica, é mais ou menos invisível.
Assim se explica, por exemplo, que Eça não tivesse reparado na revolução das
artes plásticas desencadeada pelo impressionismo. Mas quanto à filosofia
acontece que ela não tem feito parte dos nossos hábitos culturais, mormente dos
literatos. Antero é uma excepção. E relidas há pouco as Tendências, não me tomou o grande entusiasmo em que têm sido lidas,
apesar de elas terem qualidade q.b. Para mais, Eça, por desconfiança ou
temperamento, nunca se deu a grandes trabalhos de erudição e foi-se governando
como pôde com o razoável que foi sabendo. O tipo de cultura de muitos de então
era o histórico-político (além do literário, obviamente), como hoje é o
filosófico-político (além de, etc.). Mas mesmo o domínio literário não se
estenderia muito além do romantismo. O resto procurava-o ainda, se possível,
nas informações do seu tempo. Ainda há pouco o Prof. Santos Alves demonstrou que a informação para o seu
conto «A Perfeição», com a sua história de Ulisses e Calipso, não a
procurou Eça em Homero mas em
Lecomte de Lisle.
Fradique lia Sófocles
«no original»? É imensamente duvidoso. Conhecia-o Eça em tradução? É bastante
duvidoso. Mas o que não tem dúvida é que mencionar Sófocles faz o seu efeito.
Conhecia Eça os filósofos que menciona? Leu Schopenhauer? Terá mesmo
lido Comte? Mesmíssimo Taine? Calo-me na minha dúvida.
Falo de Taine filósofo, não do Taine ensaísta literário. E quando sugiro o
filósofo, penso mesmo no da Filosofia da
Arte, mais chegado aos seus interesses. É possível que Eça duvidasse do
interesse da filosofia, por ela conduzir pretensamente ao cepticismo pela
diversidade ou antagonismo de opiniões. E isto era mais sensível nesse tempo em
que a ciência era um Absoluto
pela confiança que merecia – com efeitos em múltiplos domínios (religioso,
ético, estético, etc.). Compreende-se tal cepticismo porque ele perdurou até
nós. A filosofia – dizia um gracioso, como é sabido – é um saber «com o qual ou
sem o qual se fica sempre tal e qual». Isto tem piada, mas é absurdo. Tão
absurdo como dizer-se que se não ama tal mulher, porque milhentas pessoas a
acham detestável ou desinteressante. Tão absurdo com não aderir a nenhum
partido político porque eles se contradizem uns aos outros. Tão absurdo como
negar o interesse da arte do passado, porque ela se não parece com a nossa. O
valor da filosofia está aqui – em
reconhecermo-nos a nós próprios na
proposta que nos faz (e é assim para nós a revelação do que não sabíamos que
sabíamos). O valor da filosofia está na emoção original de quem filosófa, como
a emoção do poeta.
Mas isto não tive tempo de o dizer ao Campos
Matos quando ele me admitiu o desinteresse do Eça pela filosofia em virtude do
seu cepticismo em face da controvérsia implícita às suas proposições. E eu
também não digo mais nada porque me acabou a tinta na caneta.
*
E agora que já tenho tinta, queria só
dizer que está calor.
VF
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