sexta-feira, 15 de março de 2013

15 – Março (quinta). [1990]

Quando vou buscar o jornal, encontro com frequência um casal, de idade próxima da minha, que um pouco sempre me emociona e intriga. De braço dado, muito compostos, muito integrados nessa compostura, lembram-me um casal romano no tempo de Augusto, exemplo de um certo ideal de uma união honesta. Será verdade? Nós temos desde a nascença quem nos ensine a ser gente. São os pais para a revelação do Mundo, é a escola para a infância, a adolescência e a juventude. É depois a própria vida que vai fazendo o que pode para a nossa formação de adultos, e depois acabou. A velhice ninguém a ensina e a sua aprendizagem temos de fazê-la nós até à indiferença. Todo o ser vivo tem uma pele ou uma casca a defendê-lo. Mas ele é permeável a uma emoção, a um descascar de um fruto ou a um martelo para o partir quando é preciso. A pele do velho endurece para a sua defesa, que é o que sobretudo tem de aprender. Até que nenhum martelo a possa já partir, a não ser o da morte, que parte tudo. 
*
O arquitecto Campos Matos, que é um fanático admirador do Eça como eu (embora o meu fanatismo vá tendo já as suas quebras) publicou no JL da outra semana (o 400.º) um artigo sobre o nosso grande homem e a filosofia. E escreve-me hoje a pedir a minha opinião. Procurei o número para o reler, mas já o não encontrei. De quando em quando, para baixar o nível da montanha dos periódicos, a Regina leva uma braçada deles aos nossos vizinhos, como em Fontanelas os transporta para a senhora Joana que nos vendia o leite, agora comprado na loja empacotado. De modo que não pude reler o artigo em questão. Mas pelo telefone, e apoiado na memória que dele me ficou, respondi ao arquitecto que
Toda a época tem a sua óptica com que lê toda a contemporaneidade. E o que não cabe nessa óptica, é mais ou menos invisível. Assim se explica, por exemplo, que Eça não tivesse reparado na revolução das artes plásticas desencadeada pelo impressionismo. Mas quanto à filosofia acontece que ela não tem feito parte dos nossos hábitos culturais, mormente dos literatos. Antero é uma excepção. E relidas há pouco as Tendências, não me tomou o grande entusiasmo em que têm sido lidas, apesar de elas terem qualidade q.b. Para mais, Eça, por desconfiança ou temperamento, nunca se deu a grandes trabalhos de erudição e foi-se governando como pôde com o razoável que foi sabendo. O tipo de cultura de muitos de então era o histórico-político (além do literário, obviamente), como hoje é o filosófico-político (além de, etc.). Mas mesmo o domínio literário não se estenderia muito além do romantismo. O resto procurava-o ainda, se possível, nas informações do seu tempo. Ainda há pouco o Prof. Santos Alves demonstrou que a informação para o seu conto «A Perfeição», com a sua história de Ulisses e Calipso, não a procurou Eça em Homero mas em Lecomte de Lisle. Fradique lia Sófocles «no original»? É imensamente duvidoso. Conhecia-o Eça em tradução? É bastante duvidoso. Mas o que não tem dúvida é que mencionar Sófocles faz o seu efeito. Conhecia Eça os filósofos que menciona? Leu Schopenhauer? Terá mesmo lido Comte? Mesmíssimo Taine? Calo-me na minha dúvida. Falo de Taine filósofo, não do Taine ensaísta literário. E quando sugiro o filósofo, penso mesmo no da Filosofia da Arte, mais chegado aos seus interesses. É possível que Eça duvidasse do interesse da filosofia, por ela conduzir pretensamente ao cepticismo pela diversidade ou antagonismo de opiniões. E isto era mais sensível nesse tempo em que a ciência era um Absoluto pela confiança que merecia – com efeitos em múltiplos domínios (religioso, ético, estético, etc.). Compreende-se tal cepticismo porque ele perdurou até nós. A filosofia – dizia um gracioso, como é sabido – é um saber «com o qual ou sem o qual se fica sempre tal e qual». Isto tem piada, mas é absurdo. Tão absurdo como dizer-se que se não ama tal mulher, porque milhentas pessoas a acham detestável ou desinteressante. Tão absurdo com não aderir a nenhum partido político porque eles se contradizem uns aos outros. Tão absurdo como negar o interesse da arte do passado, porque ela se não parece com a nossa. O valor da filosofia está aqui – em reconhecermo-nos a nós próprios na proposta que nos faz (e é assim para nós a revelação do que não sabíamos que sabíamos). O valor da filosofia está na emoção original de quem filosófa, como a emoção do poeta.
Mas isto não tive tempo de o dizer ao Campos Matos quando ele me admitiu o desinteresse do Eça pela filosofia em virtude do seu cepticismo em face da controvérsia implícita às suas proposições. E eu também não digo mais nada porque me acabou a tinta na caneta.
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E agora que já tenho tinta, queria só dizer que está calor.
VF 

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