domingo, 3 de março de 2013

3 – Março (sábado). [1990]

A Sibéria desceu cá até ao sul. A ver se aquecia, talvez. Mas foi isto que gelou. E um vento desabrido, estranhando decerto a visita, anda doido pelo pinhal. Estamos em Fontanelas, claro. Mas metemo-nos na toca e o vento que esbraveje lá fora como um touro. A casa aguenta como num «burladero» das praças do dito. E há o fogão para nos pôr a alma em brandura. Tem calor, tem a sua luz incerta, oscilando nos madeiros, e tem a música do seu rumor longínquo, estendido aos confins da memória. Cá estou a olhá-lo e a ouvi-lo e a transpô-lo para esta folha de papel sobre a prancheta nos joelhos. A chatice é que um fogão não nos dá muito tempo de descanso. Exige-nos uma constante atenção para o irmos abastecendo de alimento, revolver-lhe os tocos de lenha para lhes ir comendo os lados ainda por comer. E há o lixo das cinzas que vai lançando não sei como para os arredores do seu alumiar. Mas isso é com a Regina, coitada, e ela que limpe depois. Estou a ser escritor e tenho as exigências da minha comodidade – e o futuro não me vai perdoar que eu não cumpra a minha missão. Óptimo.
Mas logo tenho de ir a Cascais a casa do Pedro Viegas, que foi meu aluno e anda a desanichar a minha «filosofia» para uma tese, como devo já ter dito e não fica mal dizer outra vez. A minha «filosofia». Nunca pensei que a tivesse, para lã da que tem toda a gente que utiliza da língua as «orações subordinadas». Tudo isto para dizer o quê? Tudo isto para dizer que, por uma aberração pouco inteligível, rarissimamente nos deu a tineta para «filosofar» o nosso pouco. Da filosofia dos outros sabemos q.b. Mas criá-la nós próprios, está quieto. Já um dia suponho ter dado a minha explicação da desgraça. E a explicação é sobretudo a de que temos um pânico imbecil de parecermos imbecis. A filosofia é para povos civilizados e nós tememos o ridículo de o não sermos, mas com o desejo insofrido de o parecermos. Iríamos nós estragar a nossa imagem com a pretensão de que não temos bossa para o sermos? Em todo o caso, há realmente uma tendência ancestral para a frivolidade, a chalaça, a brincalhotice que não dão muito para a reflexão. E fazendo da necessidade virtude, ou dos maus hábitos coisa vistosa, ou da preguiça um modo alegre de ser, ou da inferioridade um seu disfarce com um modo superior e fácil e desembaraçado de ser – acabamos por ver na criação filosófica uma madureza mais própria de tipos extravagantes, maníacos que andam fora do manicómio, tipos pitorescos mais próprios para espectáculos de circo.
De todo o modo, e sobretudo no nosso tempo, vai uma certa distância entre a reflexão avulsa mais própria do ensaísmo, e a estruturação de um pensar filosófico responsável, organizado, disciplinado, sistematizado. Eu renunciei à poesia em versos para me não dizer antecipadamente poeta. Mas a poesia que houver em mim com vontade de vir até cá fora, lá está o romance ou certo ensaísmo para lhe dar esse gosto. Eu jamais pensei em organizar uma obra filosófica. Mas o que houve em mim com vontade de dizer de sua justiça em filosofia, lá tem o ensaísmo e mesmo o romance para fazer o seu número. Mas haverá em mim ideias «filosóficas» da minha lavra? Nunca me incomodei a sabê-lo. Nem eu me dava à pachorra de revisitar e espiolhar os filósofos das minhas relações mais ou menos familiares para tirar a coisa a limpo. O que para mim foi sempre fundamental foi sentir o que penso e digo e não pensá-lo apenas como quem joga xadrez. Naturalmente interrogo-me sobre o que me vem vindo à vida. O «eu», a «verdade», o «tempo», a «liberdade», etc. etc. São questões que me obrigaram a reflectir. Mas são, para lá disso, o que me foi um sentir original, quero dizer, na sua dimensão originária, onde a emoção sobreleva o entender. Não me afligem assim aí as possíveis «contradições», Até porque é muito difícil que elas existam visto que elas são mais próprias das construções mentais. O que me inibe, para lá do trabalho disso, é a ordenação de tudo em engrenagens necessárias com o preenchimento de todos os espaços vazios para formar os vários blocos em função de um conjunto final. De todo o modo, suponho, a Invocação ao Meu Corpo é um livro totalizado. Mas há naturalmente o que ficou de fora. E do que ficou de fora o mais importante é o que poderia ser uma «Estética» que está fragmentada em múltiplas anotações.
Mas já perdi o fio à meada. E fico-me por aqui.

VF 

Sem comentários:

Enviar um comentário