domingo, 24 de março de 2013

24 – Março (sábado). [1990]

Viemos ontem a Fontane1as (num carro novo! E sem estampanço nem mossa, que é o estabelecido quando mudo de carro, como sempre que tenho uma gravata nova baptizo-a logo com um pingo da sopa). Viemos ontem a Fontanelas e hoje de manhã, estava eu aninhado ao fogão, a Regina diz-me da porta da rua:
– Vem ver.
E não adianta pedir-lhe – diz lá o que é – para me não dar a maçada de levantar. Porque ela insiste: – Vem ver – e habitualmente o que me obriga a ir ver é, sei lá, uma aranha enorme, ou um pássaro no fio eléctrico ou um esquisito carreiro de formigas, coisas assim. Não perguntei o que era, porque me diria – Vem ver. E levantei o cu do sofá e fui ver. E realmente – que espectáculo. Não era só o portão da entrada mas todo o muro de tijolo que estavam deslumbrantes no seu amontoado de glicínias. O sol iluminava-as e era assim um festival de colorido e luz no esplendor da manhã. Fiquei-me quedo a olhar no desejo de entender o que me maravilhava naquele arroxeado de inúmeros cachos pendentes ao longo do muro e por cima do portão. Devia haver o seu perfume no ar mas o meu olfacto córneo não dava conta. E então fui até ao muro e mergulhei nos cachos de cor lilás e aspirei fundo a sua essência de ser flor e dizer na sua apoteose que a alegria existe e a festa e a vida que regressa por sobre a morte que a esquecera…
*
Quando estou cansado, sobretudo por dentro, dá-me jeito ouvir baladas de Coimbra. A Regina diz que já está farta (mas ela também só andou em Coimbra uns dois anos) e então aproveito quando estou só para me refastelar. A verdade é que também são já poucos os fados que suporto e desses é preciso não dar ouvidos à letra para me ficar sossegado o estômago. Porque são versos de uma infantilidade inconcebível quase sempre. E os que o não são têm uma escala curta de variações. Há, aliás, fados de uma aceitação generalizada e que pertencem assim necessariamente a quase todos os discos e recitais, mas que me são insuportáveis. É o caso do «O meu menino é de oiro», que é talvez a exaltação do infanticídio. De modo que o meu repertório aceitável é bastante curto. Mas há fados bonitos que jamais ouvi em disco ou cassete ou recitais. Lembro por exemplo «Ó meu amor, minha vida / ó minha esguia andorinha». Ou «Meu amor vem à janela». Ou mesmo o que vem no In illo tempore: «As nossas capas rotas, velhinhas (...) / tremem no ar. / São andorinhas (bis) / que se preparam para emigrar». Bom, mas isto vinha a propósito de? Não sei. Talvez do detestável das letras das baladas. E por associação, lembrei-me de que ainda no meu tempo, ao que suponho, as reuniões de curso metiam lápide versificatória no Penedo. São versos simpáticos, mas raro avançam sobre isso. Aliás, nós (eu) sorríamos intrigados para aquela velhada que andava por ali a curtir saudades, que era para nós (para mim) coisa inconcebível para quem se libertara enfim da canga do curso e ia enfim beneficiar da sua enorme trabalheira. Também disse o meu adeus de despedida, tive um jantar com os meus amigos do «Bolinhas» (de que julgo ter já falado), mas a coisa era mais para cumprir um ritual. Por mim o que eu queria era libertar-me daquela servidão e ir enfim ser livre e ganhar a minha vida. Mas como já disse não sei onde, Coimbra, para quem lá andou, só nasce depois de morrer. E só à distância ela emerge com o seu prodígio de legenda e sedução.
Mas perdi o fio outra vez. Portanto, as lápides do Penedo. Quando eu lá andava, entretinha-me às vezes a ler aqueles versos desmaiados pelos anos e um pouco de senilidade. Mas houve um dia em que fixei uns, creio que por uma só leitura deles. Não são versos que revolucionem a poética nacional, mas marcaram profundamente a coimbrão. Pude depois saber que ficaram famosos, mas eu decorei-os logo, ignorante ainda da sua fama. E nem sei de quem são. E nem sei de quando são. Mas fixaram-se-me ferozmente na memória, ressalvada alguma «gralha» dela. Aqui ficam para os que os não leram ou esqueceram: «Se esta velha pedra visse (ouvisse) / o que fomos aos vinte anos / – ais de amor, (tantos) puros enganos, / talvez que a rir se partisse. / Mas se tivesse olhos e olhasse / os espectros que hoje somos, / tão mudados do que fomos, / talvez que a pedra chorasse». Não eram versos lindos para uma balada? Nunca ninguém se lembrou disso. Se a música esquecesse, nunca mais decerto se esqueceriam os versos. Como me não esqueceram a mim.
VF

Sem comentários:

Enviar um comentário