Ontem fui com a Lídia a uma homenagem ao
Ramos Rosa
na Gulbenkian. Mas já de
véspera houvera festa pelo mesmo motivo. A coisa começou num número de uma
revista belga, todo ele dedicado ao nosso poeta. Mas a isso não fui. Era de
noite e homenagem a dobrar era muito para os meus nervos sensíveis.
Fui ontem. Lá estava uma mesa cheia de
oradores e o auditório cheio de público ouvinte. Havia poucos poetas de tamanho
visível e de prosadores não havia mais.
Mas de intelectuais de outras áreas, a
colheita fora razoável. Os oradores falaram todos em francês, o que me feriu um
pouco a lusitanidade. Porque de fala natural nessa língua havia apenas dois
belgas (ou um belga e outro não, já não sei). Pedro Tamen era o
«moderador» e disse porque estávamos ali, para a hipótese de alguém não saber,
e deu a identidade de cada orador, excepto do Eduardo Lourenço,
pressupostamente sabida. E depois cada um pôs uma rosa ao peito do Rosa. O
primeiro, aliás, falou foi da revista em irreprimível publicidade. O segundo
fez distinções poéticas à prosa dos ouvintes que obviamente as confundiam, e
disse que a poesia era pela face e
não pela surface, que era pelo milieu e não pelo espace (seria) e que era por não sei quê e não por não sei quê.
Depois voltou à outra ponta da mesa e levou a eito os portugueses. No fim o
Rosa também quis dizer. Disse em português. E estava escarolado, aperaltado com
gravata e tudo. A meio da sua oratória, a Lídia e eu fomo-nos raspando
estrategicamente para a hipótese de atropelo apoteótico. Entretanto, quero
dizer durante, conheci a jovem escritora e ensaísta Silvina Rodrigues Lopes.
Ela mostrou à Lídia desejo de me conhecer. E eu a ela. Foi uma vontade cruzada,
não sei porquê. É uma rapariga estranha que tem uns textos muito breves e um
ensaio sobre a Agustina,
sua tese de mestrado. Disse-lhe do meu interesse em conhecê-la. Disse-me que
lhe telefonasse. Disse-lhe que não tinha o número. Disse-me que mo enviaria.
Ficou assim formalizado o anteprojecto de um encontro. À saída (ou à entrada?)
Lídia mostrou-me o seu pânico com a anulação do significado de muitas obras
literárias com o rebentamento a Leste do grande logro comunista. E eu
disse-lhe:
– Já a tinha alertado há muito tempo.
Lembra-se?
Ela disse que sim. Aliás o seu caso
pessoal, disse eu ainda, não é grave, porque está ainda em começo de carreira.
Não o dos outros, que ficaram no vazadoiro da História com a farrapada dos seus
livros.
*
O Hegel. Sinto-me razoavelmente bem
instalado no seu sistema, disse eu. Aponto pequenos arranjos, inclusive a
jigajoga dos três tempos do progresso. E à parte evidentemente o que nos diz
sobre o destino da arte – não o que diz sobre ela, que é quase sempre
maravilhoso. Muito bem. E então o «eu»? Que fez ele para se safar desta trituração,
que tudo mastiga? Como é que o pobre Kierkegaard vai aguentar,
sem me cuspir na cara? Mas é tão simples. Porque eu, realmente, não caibo no
sistema. Mas acabo por ter lá cabido.
Neste instante em que me penso, e logo no referente à fisiologia, não tenho pais. Mas quem me lesse a alma
depois de morta, saberia que os tive.
Eu sou eu apenas, em qualquer situação. Mas, para começar, é sempre em função
dele que o sou. Por sobre tudo, porém, o eu que estou sendo não tem tempo nem
condicionamento algum de qualquer natureza. Porque eu sou o princípio de tudo e
moro na eternidade. Hegel está à minha espera para ter razão. Mas quando a
tiver, já cá não estou, ou seja, já a não tem. Tem-na para outro sobre mim, e o
seu sistema começa logo a funcionar. Mas era de mim que eu estava a falar.
Não me devo ter explicado bem. Não me
devo ter metido na coerência, que é onde se dorme bem. Mas não me interessa
nada disso, que é onde se dorme melhor…
*
Que lindo dia de sol. Que linda
publicidade para a Primavera. Mas a alma começa-me a não acompanhar as
estações. Em que estação me ficou? Deixá-lo. Tenho pouca luz na alma para haver
Primavera nela também. Acabou-se. Vejo-a da janela como o paralítico. E haverá
talvez ilusão bastante para julgar que a sou…
VF
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