sábado, 9 de março de 2013

9 – Março (sexta). [1990]

Ontem fui com a Lídia a uma homenagem ao Ramos Rosa na Gulbenkian. Mas já de véspera houvera festa pelo mesmo motivo. A coisa começou num número de uma revista belga, todo ele dedicado ao nosso poeta. Mas a isso não fui. Era de noite e homenagem a dobrar era muito para os meus nervos sensíveis.
Fui ontem. Lá estava uma mesa cheia de oradores e o auditório cheio de público ouvinte. Havia poucos poetas de tamanho visível e de prosadores não havia mais.
Mas de intelectuais de outras áreas, a colheita fora razoável. Os oradores falaram todos em francês, o que me feriu um pouco a lusitanidade. Porque de fala natural nessa língua havia apenas dois belgas (ou um belga e outro não, já não sei). Pedro Tamen era o «moderador» e disse porque estávamos ali, para a hipótese de alguém não saber, e deu a identidade de cada orador, excepto do Eduardo Lourenço, pressupostamente sabida. E depois cada um pôs uma rosa ao peito do Rosa. O primeiro, aliás, falou foi da revista em irreprimível publicidade. O segundo fez distinções poéticas à prosa dos ouvintes que obviamente as confundiam, e disse que a poesia era pela face e não pela surface, que era pelo milieu e não pelo espace (seria) e que era por não sei quê e não por não sei quê. Depois voltou à outra ponta da mesa e levou a eito os portugueses. No fim o Rosa também quis dizer. Disse em português. E estava escarolado, aperaltado com gravata e tudo. A meio da sua oratória, a Lídia e eu fomo-nos raspando estrategicamente para a hipótese de atropelo apoteótico. Entretanto, quero dizer durante, conheci a jovem escritora e ensaísta Silvina Rodrigues Lopes. Ela mostrou à Lídia desejo de me conhecer. E eu a ela. Foi uma vontade cruzada, não sei porquê. É uma rapariga estranha que tem uns textos muito breves e um ensaio sobre a Agustina, sua tese de mestrado. Disse-lhe do meu interesse em conhecê-la. Disse-me que lhe telefonasse. Disse-lhe que não tinha o número. Disse-me que mo enviaria. Ficou assim formalizado o anteprojecto de um encontro. À saída (ou à entrada?) Lídia mostrou-me o seu pânico com a anulação do significado de muitas obras literárias com o rebentamento a Leste do grande logro comunista. E eu disse-lhe:
– Já a tinha alertado há muito tempo. Lembra-se?
Ela disse que sim. Aliás o seu caso pessoal, disse eu ainda, não é grave, porque está ainda em começo de carreira. Não o dos outros, que ficaram no vazadoiro da História com a farrapada dos seus livros.
*
O Hegel. Sinto-me razoavelmente bem instalado no seu sistema, disse eu. Aponto pequenos arranjos, inclusive a jigajoga dos três tempos do progresso. E à parte evidentemente o que nos diz sobre o destino da arte – não o que diz sobre ela, que é quase sempre maravilhoso. Muito bem. E então o «eu»? Que fez ele para se safar desta trituração, que tudo mastiga? Como é que o pobre Kierkegaard vai aguentar, sem me cuspir na cara? Mas é tão simples. Porque eu, realmente, não caibo no sistema. Mas acabo por ter lá cabido. Neste instante em que me penso, e logo no referente à fisiologia, não tenho pais. Mas quem me lesse a alma depois de morta, saberia que os tive. Eu sou eu apenas, em qualquer situação. Mas, para começar, é sempre em função dele que o sou. Por sobre tudo, porém, o eu que estou sendo não tem tempo nem condicionamento algum de qualquer natureza. Porque eu sou o princípio de tudo e moro na eternidade. Hegel está à minha espera para ter razão. Mas quando a tiver, já cá não estou, ou seja, já a não tem. Tem-na para outro sobre mim, e o seu sistema começa logo a funcionar. Mas era de mim que eu estava a falar.
Não me devo ter explicado bem. Não me devo ter metido na coerência, que é onde se dorme bem. Mas não me interessa nada disso, que é onde se dorme melhor…
*
Que lindo dia de sol. Que linda publicidade para a Primavera. Mas a alma começa-me a não acompanhar as estações. Em que estação me ficou? Deixá-lo. Tenho pouca luz na alma para haver Primavera nela também. Acabou-se. Vejo-a da janela como o paralítico. E haverá talvez ilusão bastante para julgar que a sou…
VF 

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