quinta-feira, 21 de março de 2013

21 – Março (quarta). [1990]

É Primavera! É Primavera! Que bom renascer como se renascesse. Mas a ideia que mais profundamente me toma é a de que subitamente muita coisa começou não a renascer, mas a perder sentido. A agonia. Que sentido tem hoje escrever romances? Os nossos romancistas pressentem-no e andam desorientados. Que sentido tem hoje a política, depois do estrondo de Leste? Os nossos politiqueiros adivinham-no, porque as guerrilhas abrandaram – sobretudo as promovidas pelo esquerdismo em geral e a comunada em particular. Que sentido tem ir ao cinema e por extensão jazer cinema? Que sentido tem escrever cartas? filosofia? compor música? fazer pintura? Não se trata bem de negar a validade disso – trata-se de lhe não achar sentido, justificação. Trata-se de nos sentirmos desmotivados para a realização seja do que for. De nos faltar convicção. Tudo existe em função de si e do contexto que o exige, com o qual está em harmonia, com o qual forma um todo. Eu escrevo um romance e sinto, sem o pensar, que ele enraíza num modo de se ser geral e que é portanto uma continuação. O nosso tempo não firma as raízes de nada porque tudo é nele areia e esterilidade. A obra acrescenta o meio em que nasce e dá-lhe uma certa razão de ser. Mas foi esse meio que a solicitou para a existência dos dois. Hoje a obra está sozinha e é quase ridículo o seu nascer como uma anedota estúpida. O nosso tempo é o da desagregação, do esfarelamento, da pulverização e tudo o que se cria aproveita um grão de terra que não pode sustentá-lo. Nós estamos todos separados uns dos outros e toda a obra exige um grupo, mesmo minúsculo, para se justificar. Mesmo a política o sabe com a pulverização dos estados e das regiões. O Mundo de hoje é um saco de areia. Nós encostamo-nos uns aos outros nesse saco, mas não temos nada a ver uns com os outros nem sabemos sequer que estamos ensacados.
De todo o modo, hoje é Primavera. E é belo ver que a Natureza se cumpre, em total indiferença por nos não cumprirmos nós.
VF

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