Ontem fui a Cascais, a casa do meu
antigo aluno Pedro Viegas, que escreveu uma breve «tese» sobre a minha
«filosofia». Como eu não daria com a «torre» onde mora, fui até Sintra e ele foi aí buscar-me.
Estava um tempo horroroso com um vento de ciclone e eu estava também em dia
não, com as minhas avarias nervosas – a vaga cólica no ventre como quando ia a
exame e a subsequente irritação e esgotamento. Mas havia que cumprir o
combinado e lá fui. Creio ter dito algures que ele preparava o doutoramento
sobre mim. Houve equívoco meu. Ele trabalha e com veemência é a filosofia de Kant. Que paixão devoradora. Pressenti
que eu ia ficar chumbado na conversa com ele porque do Kant o que sei é o pouco
que me alimenta a cultura geral. Mas lá fui dando réplica e pondo objecções.
Eram objecções que genericamente se organizavam em tomo da ideia de que o
grande filósofo era um homem seco, com a obsessão de formalizar tudo, feito de
fibra mirrada, sem um pouco de humildade humana. E o Pedro Viegas esforçava-se
por me rebater esse «cliché», argumentando-me com obras menos conhecidas ou em
subtis parágrafos das outras em que toda a secura amolecia em seiva mais
parecida com a da humanidade comum. E de nada me valeu contra-atacar com uma
certa nota em que o filósofo recomendava absurdamente a redacção das obras de
arte em língua morta, a redução da moral a um esqueleto, a redução da cor dos
quadros a pura agradabilidade, a concepção da pintura a uma arte abstracta
(como já Platão no
diálogo «Filebo»),
a própria vida do grande homem a um rigor cronometrado (com a anedota do tipo
que acertava o relógio quando ele passava) e até – do que me esqueci de lembrar
– a sua última frase antes de morrer «tudo está bem», que resume o que ele foi
como máquina de viver. Pedro Viegas não se dava por convencido. E eu gostei do
seu entusiasmo e convicção porque só com isso se constroem impérios. Depois
chazou-se e fizeram-se fotos comemorativas. E houve mais Kant. E entremeado a
isso, houve a notícia inverosímil de que eu fazia parte da matéria filosófica
não sei em que curso. E eu senti-me mais vivo. E eu senti-me mais morto.
Veio depois toda a família (mulher e
filha) trazer-me a Sintra para eu retomar o meu veículo aí deixado. E
insistiram em acompanhar-me a Fontanelas. Pedro Viegas veio no meu carro, a
mulher e a filha no deles. O meu traste portou-se mal. Mas cá chegámos. Insisti
para que entrassem um pouco. Entraram. Regina já em alarme. O fogão estava
aceso (como o deles). E houve mais conversa. Agora sobre os nossos velhos
tempos do liceu. Era tudo muito antigo, já me não pertencia. Porque sou mais
novo do que isso.
*
Mas esquecia-me. Enquanto esperava em
Sintra e no café combinado a chegada do Pedro Viegas e me encolhia até à alma
da chuvada e frio que andavam lá fora e às vezes vinham pelas portas até cá
dentro, vi entrar e sair grupos de ciclistas já equipados para alguma corrida
ou que ali tinham tido alguma pausa de descanso. Envergavam o que me parecia
uma túnica de plástico contra a chuva, mas escorriam água e talvez suor pelas
pernas ao léu como competia ao desporto. E dei conta de que os meus olhos iam
até eles de rastos e em humilhação e que se não tenho mão em mim, apanhava logo
ali uma pneumonia.
VF
Sem comentários:
Enviar um comentário