segunda-feira, 4 de março de 2013

4 – Março (domingo). [1990]

Ontem fui a Cascais, a casa do meu antigo aluno Pedro Viegas, que escreveu uma breve «tese» sobre a minha «filosofia». Como eu não daria com a «torre» onde mora, fui até Sintra e ele foi aí buscar-me. Estava um tempo horroroso com um vento de ciclone e eu estava também em dia não, com as minhas avarias nervosas – a vaga cólica no ventre como quando ia a exame e a subsequente irritação e esgotamento. Mas havia que cumprir o combinado e lá fui. Creio ter dito algures que ele preparava o doutoramento sobre mim. Houve equívoco meu. Ele trabalha e com veemência é a filosofia de Kant. Que paixão devoradora. Pressenti que eu ia ficar chumbado na conversa com ele porque do Kant o que sei é o pouco que me alimenta a cultura geral. Mas lá fui dando réplica e pondo objecções. Eram objecções que genericamente se organizavam em tomo da ideia de que o grande filósofo era um homem seco, com a obsessão de formalizar tudo, feito de fibra mirrada, sem um pouco de humildade humana. E o Pedro Viegas esforçava-se por me rebater esse «cliché», argumentando-me com obras menos conhecidas ou em subtis parágrafos das outras em que toda a secura amolecia em seiva mais parecida com a da humanidade comum. E de nada me valeu contra-atacar com uma certa nota em que o filósofo recomendava absurdamente a redacção das obras de arte em língua morta, a redução da moral a um esqueleto, a redução da cor dos quadros a pura agradabilidade, a concepção da pintura a uma arte abstracta (como já Platão no diálogo «Filebo»), a própria vida do grande homem a um rigor cronometrado (com a anedota do tipo que acertava o relógio quando ele passava) e até – do que me esqueci de lembrar – a sua última frase antes de morrer «tudo está bem», que resume o que ele foi como máquina de viver. Pedro Viegas não se dava por convencido. E eu gostei do seu entusiasmo e convicção porque só com isso se constroem impérios. Depois chazou-se e fizeram-se fotos comemorativas. E houve mais Kant. E entremeado a isso, houve a notícia inverosímil de que eu fazia parte da matéria filosófica não sei em que curso. E eu senti-me mais vivo. E eu senti-me mais morto.
Veio depois toda a família (mulher e filha) trazer-me a Sintra para eu retomar o meu veículo aí deixado. E insistiram em acompanhar-me a Fontanelas. Pedro Viegas veio no meu carro, a mulher e a filha no deles. O meu traste portou-se mal. Mas cá chegámos. Insisti para que entrassem um pouco. Entraram. Regina já em alarme. O fogão estava aceso (como o deles). E houve mais conversa. Agora sobre os nossos velhos tempos do liceu. Era tudo muito antigo, já me não pertencia. Porque sou mais novo do que isso.
*
Mas esquecia-me. Enquanto esperava em Sintra e no café combinado a chegada do Pedro Viegas e me encolhia até à alma da chuvada e frio que andavam lá fora e às vezes vinham pelas portas até cá dentro, vi entrar e sair grupos de ciclistas já equipados para alguma corrida ou que ali tinham tido alguma pausa de descanso. Envergavam o que me parecia uma túnica de plástico contra a chuva, mas escorriam água e talvez suor pelas pernas ao léu como competia ao desporto. E dei conta de que os meus olhos iam até eles de rastos e em humilhação e que se não tenho mão em mim, apanhava logo ali uma pneumonia.
VF 

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