quarta-feira, 27 de março de 2013

27 – Março (terça). [1990]

Agora que estou no desemprego literário, lembro-me de mergulhar em força na filosofia. Retomar a exclusiva leitura dos pensadores mais do meu feitio, retomar talvez o meu ensaio «Um Dia de Verão», retomar alguns temas já abordados, pensar em torno do que é pensável no meu tempo. Mas justamente é este nosso tempo que me não deixa pensar. Todo o trabalho de destruição (ou de-struição) derivado afinal dos grandes questionadores da própria linguagem, deixam-me paralisado de irritação, chatice e por sobre tudo de pânico. Interrogar a linguagem em função do pensar ou pensar o questionar do pensar, sem lhe meter nada dentro do questionar para pensar, é fascinante mas ao mesmo tempo promotor de paralisia. A única matéria que me excita é o próprio homem e tudo o que respeita ao seu destino. Não os seus mecanismos do ser pensante mas do ser vivo no que importa à sua profundeza e mistério e incrível da sua condição. Problemas «existenciais», digamos, para mais depressa. Que outra coisa o nosso tempo nos permite? E isso mesmo, como é possível no meio do descalabro geral? Como pensar num mundo feito lixo e detritos e pedaços, sem possibilidade de organização? Como pensar entre ruínas? Como convencer sem convicção? Porque a convicção própria é a primeira força ou condição para a convicção alheia. As razões são a exterioridade de uma razão interior, que é a energia com que uma convicção se impõe. De todo o modo, uma vez que outros me descobriram e confirmaram nessa tineta própria para um pouco de reflexão, agora que depus as armas do entusiasmo literário, era talvez de tentar o entusiasmo noutro sítio, aí onde o reflectir recobre uma emoção que já sobrou do que fosse literatura. Mas se o que se me oferece à volta do meu ser homem é um mundo de cacos e irrisão e farrapada cultural, que poderei eu extrair de mim além de cacaria e lixeira? Vou ver. Talvez entre os cacos haja coisas estimáveis como no caixote do lixo os farrapeiras sabem encontrar para continuar a existir o seu negócio de que vão vivendo. Pois.
*
Ontem tive uma conversa difícil com a Alzira Seixo. Esta boa amiga, que já o é de há muitos anos, não é macia no trato. Há que rodear-lhe os lados mais esquinados, dar-lhe espaço para se descomprimir e estabelecer depois o contacto. Ontem foi o caso de um mestrando (candidato ao mestrado universitário) que escolhera para tese o meu Conta-Corrente. E o problema em causa era que o candidato – Luís Mourão – levara o trabalho a um concurso da Câmara de Sintra e ganhou os 500 contos do prémio. Ora uma tese não pode ser publicada antes de julgada pelo júri universitário. Mas a razão oculta disso é bem outra. Porque, enfim, o livro não fora ainda publicado e fora apenas conhecido pelo júri camarário. Mostrar o texto, dizia eu, podia ele fazê-lo a quem lhe apetecesse. E o júri da Câmara foram apenas as quatro ou cinco pessoas (ou três?) que Câmara foram apenas as quatro ou cinco pessoas (ou três?) que o viram. Alzira oscila na resposta. Mas o facto era outro – e dele não poderia eu falar. O facto é que o livro fora premiado. Ora isto punha o júri universitário em apertos. Porque ou o aprovava e podia dar o efeito de seguidismo ou submissão ao parecer camarário, ou o reprovava e surgiria uma contenda ou escândalo público. Estava assim por um triz não haver a prova universitária, que exigiria, aliás, e não tinha, uma forma canónica com capítulos, ordenação da matéria, etc. Alzira diz-me que isso foi de facto lamentável, mas o lamento maior ia para a qualidade do texto. Aí moderei o meu instinto polémico para não acirrar. E disse apenas, que, sendo uma tese de «mestrado», não supunha eu ter de ter uma dimensão de uma de doutoramento. Assim a tese dela, Alzira, de licenciatura, que é realmente muito bela, não poderia funcionar como tese de doutoramento. Eu que a princípio supus ser a tese do moço para doutoramento, fora-lhe dizendo que para isso a coisa era curta. Mas tendo-me ele respondido que era para mestrado, calei-me. Então, no fim da conversa, adiantei-lhe uma profecia, género em que não tinha sido muito atreito a falhanços: dentro de dez anos, o Luís Mourão (que não conheço ainda pessoalmente) será um dos nossos grandes ensaístas. Alzira replica-me que isso é profetizar numa margem de aldabrice, a aventura, o risco são próprios do ensaísmo. E pronto. Agora espero o resultado do exame. Era às 11 horas. São quase 15 horas e ainda não tocou o telefone. Chumbado? Se sim, é pena. Porque o rapaz tem mesmo veia para um bom ensaísmo. E em face disso, que é que significa um chumbo universitário, senão um chumbo (mais um) da própria Universidade?
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Afinal o rapaz lá passou. Mas apenas com um «bom». A Alzira cumpriu a sua forte reserva. Mas não está mal. Tem agora o doutoramento para repor a verdade das coisas. E tem sobretudo o futuro para explicar o que significa para baixo ou para cima um grau académico.
VF

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