Esta noite mudou a hora. Estamos já na
«hora de Verão», sem Verão ainda para acompanhar. Mas com esta mudança a luz
demora-se com a hora que lhe deu e imediatamente começámos a sentir-nos quase
em veraneio. Senti-o por exemplo na casa dos Paixões em Almoçageme onde de
tarde os fomos visitar. A Lurdes não estava, sublimada, como agora anda, às
alturas ministeriais. Mas estava o António, já descalço e de calções, estendido
na relva ao sol. Com ele estava um cão. Um cão? Sim, um cachorro boxer. Onde o achara? Comprara-o. Um
cachorro? Na minha aldeia davam-lhe uma ninhada e ainda lhe ficavam
agradecidos. Pois. Mas este é boxer.
Não é para ofertar? Custou trinta e dois contos. Trinta e dois com…? Olhei o
bicho a ver se descobria onde é que tinha escondida a possibilidade dos trinta
e dois contos. Era um bichinho feio, de trombinha arreganhada para a raiva
futura. Mas é assim. Na vulgaridade do bonito, o feio é que é bonito. Lá estava
o cachorrinho com a sua singularidade que o aristocratizava na plebe inumerável
dos rafeiros. E tratado com todas as regras da pediatria canina. Cerelac,
papinhas experimentadas e garantidas por essa experiência. Depois prosseguirá o
seu regime científico. Qualquer rafeiro na minha aldeia roía logo os ossos da
sua condição. Ou pedras, se os não houvesse. Este comia papinhas. Pois. De todo
o modo, meu caro António, com papas e trinta e dois contos, o bichinho, muito
engraçado como toda a infância, tem um trombilzinho mesmo feio.
*
Estão muito em voga os diários,
parece-me. E lembra-me a propósito, ou despropósito, o que se contava de certo
mestre de Anatomia, ou de
qualquer outro saber que mete cadáveres, no tempo em que eu andava em Coimbra.
Dizia-se, com efeito, que numa das primeiras aulas ele avisava os alunos de que
para se ser um bom anatomista (ou não sei quê) se devia ser porco e ter bom
golpe de vista. E para exemplificar o preceito, mergulhava um dedo no rabo do
cadáver e passava-o depois pelos lábios. Convidou então um aluno a repetir a
proeza. E o aluno mergulhou o dedo no morto e lambuzou a boca com ele. O mestre
sorriu e comentou:
– O senhor lá porco é. Mas não tem bom
golpe de vista.
E isto porque o mestre metera realmente
o dedo no cadáver mas o que passara pelos lábios era um outro dedo. E é o que me ocorre quase sempre quando leio um novo
diarista. Ele conta banalidades ou recordações pessoais da juventude ou
infância. Mas ignora que essas coisas são apenas lamentáveis ou ridículas, se
não forem outra coisa ao passarem à
escrita.
VF
Sem comentários:
Enviar um comentário