segunda-feira, 25 de março de 2013

25 – Março (domingo). [1990]

Esta noite mudou a hora. Estamos já na «hora de Verão», sem Verão ainda para acompanhar. Mas com esta mudança a luz demora-se com a hora que lhe deu e imediatamente começámos a sentir-nos quase em veraneio. Senti-o por exemplo na casa dos Paixões em Almoçageme onde de tarde os fomos visitar. A Lurdes não estava, sublimada, como agora anda, às alturas ministeriais. Mas estava o António, já descalço e de calções, estendido na relva ao sol. Com ele estava um cão. Um cão? Sim, um cachorro boxer. Onde o achara? Comprara-o. Um cachorro? Na minha aldeia davam-lhe uma ninhada e ainda lhe ficavam agradecidos. Pois. Mas este é boxer. Não é para ofertar? Custou trinta e dois contos. Trinta e dois com…? Olhei o bicho a ver se descobria onde é que tinha escondida a possibilidade dos trinta e dois contos. Era um bichinho feio, de trombinha arreganhada para a raiva futura. Mas é assim. Na vulgaridade do bonito, o feio é que é bonito. Lá estava o cachorrinho com a sua singularidade que o aristocratizava na plebe inumerável dos rafeiros. E tratado com todas as regras da pediatria canina. Cerelac, papinhas experimentadas e garantidas por essa experiência. Depois prosseguirá o seu regime científico. Qualquer rafeiro na minha aldeia roía logo os ossos da sua condição. Ou pedras, se os não houvesse. Este comia papinhas. Pois. De todo o modo, meu caro António, com papas e trinta e dois contos, o bichinho, muito engraçado como toda a infância, tem um trombilzinho mesmo feio.
*
Estão muito em voga os diários, parece-me. E lembra-me a propósito, ou despropósito, o que se contava de certo mestre de Anatomia, ou de qualquer outro saber que mete cadáveres, no tempo em que eu andava em Coimbra. Dizia-se, com efeito, que numa das primeiras aulas ele avisava os alunos de que para se ser um bom anatomista (ou não sei quê) se devia ser porco e ter bom golpe de vista. E para exemplificar o preceito, mergulhava um dedo no rabo do cadáver e passava-o depois pelos lábios. Convidou então um aluno a repetir a proeza. E o aluno mergulhou o dedo no morto e lambuzou a boca com ele. O mestre sorriu e comentou:
– O senhor lá porco é. Mas não tem bom golpe de vista.
E isto porque o mestre metera realmente o dedo no cadáver mas o que passara pelos lábios era um outro dedo. E é o que me ocorre quase sempre quando leio um novo diarista. Ele conta banalidades ou recordações pessoais da juventude ou infância. Mas ignora que essas coisas são apenas lamentáveis ou ridículas, se não forem outra coisa ao passarem à escrita.
VF

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